Crônicas

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AS CARMELITAS DE COMPIÈGNE - 1794

Prof Eduardo Simões

         Compiègne, no final do século XVIII, era uma pequena cidade próxima a Paris, com uns 8 mil habitantes, mas com uma grande relevância histórica. Nela foram construídos, ao longo de mais de mil anos, vários castelos-moradias para os reis de França, nos quais se realizaram reuniões, tratados e outros fatos significativos para a história do país. Nunca foi um lugar seguro para as grandes damas da França, afinal foi nas suas imediações que, em 23 de maio de 1430, Joana D’Arc foi capturada pelos Borguinhões, família francesa aliada aos ingleses, e entregue a estes para ser morta.
         O Carmelo Descalço de Compiègne, um afloramento da reforma da Ordem do Carmelo, iniciada na Espanha por Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, foi fundado em abril de 1641, numa edificação que não existe mais, próxima ao castelo real, e durante mais de cem anos gozou da simpatia da população e do patronato de reis e rainhas de França, que o cercaram de mimos. Eventualmente jovens mocinhas da nobreza, além de gente do povo, ingressaram no convento, mostrando a enorme afinidade que havia entre o clero francês e a ordem social anterior à Revolução.
         Esse prestígio e proximidade com o trono, tão invejado num determinado contexto, mostrou-se, porém, ser perigoso e mortal, quando as circunstâncias mudaram.

Comunidade sob Ataque


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Esse vitral, de uma igreja na Inglaterra, mostra com pujança e trágica beleza, o incrível e altamente edificante exemplo dessas mulheres.

         As carmelitas são, como se sabe, monjas enclausuradas, ou seja, professam seus votos de pobreza, obediência e castidade, ligadas inarredavelmente a uma construção, uma casa, que pode ser classificada como abadia ou priorado, mas que no caso carmelita é chamado simplesmente de convento. Portanto as carmelitas que professam num convento, e, em geral, passam o resto de suas vidas nele, são contemplativas, e só saem do convento em algumas circunstâncias especiais, como fundar outro convento, e não são admitidas pessoas do sexo oposto no interior de seus conventos, exceto padres em missão. As freiras recebem as visitas por meio de uma janela gradeada, chamada parlatório, numa área só para isso, isolada do resto.
         Esse enclausuramento tão rigoroso, mas necessário, em virtude da natureza de sua vocação, sempre gerou no homem comum um misto de curiosidade e especulações pueris sobre o que ocorreria lá dentro, ainda mais porque a rotina do Carmelo, apesar de dirigida às mulheres, é muito pesada. Mas tudo isso está mais que divulgado em livros de memórias e divulgação feitas pelas próprias freiras, e nas biografias de seus santos. Não há qualquer mistério. Mas para quem já se decidiu em fazer o mal, a última coisa que lhe interessa é saber mais sobre a inocência de suas vítimas, e considera tudo o que se sabe a respeito daquilo ou daquele que deve ser perseguido, é sempre inútil ou mentiroso, de acordo com a fantasia do perseguidor.
         E como fantasiavam os teóricos da burguesia francesa do século XVIII! Quantos preconceitos delírios não vieram à luz sob o crivo de uma suposta sabedoria ou razão “natural”! Enquanto estas eram apenas belas teorias, pouco mal fizeram, mas o mal, assim como o bem, não se cansa e, por isso, quando a monarquia mostrou-se incapaz de dar uma reposta adequada à grave crise econômica em que o país mergulhara, deflagrando Revolução Francesa, muitas dessas especulações desarrazoadas se transformaram em ação de estado, em política nacional.
         Em 2 de novembro de 1789, ainda na fase inicial, “moderada”, a Assembleia Nacional, que evoluíra, por pressão da burguesia, dos Estados Gerais, decretou o confisco de todos os bens da Igreja na França, que passariam a fazer parte dos ativos do Tesouro Nacional. O objetivo era usar da riqueza eclesiástica, clero da Igreja Católica na França, que durante o período monárquico não pagavam impostos, da mesma forma que a nobreza, para minimizar a crise financeira gerada pelos desmandos reais. Os religiosos, segundo determinação da Assembleia, poderiam ficar morando nessas edificações temporariamente. Nesse momento as freiras do convento de Compiègne, em número de 21, veem a sua clausura forçada por funcionários do governo, para fazer um levantamento minucioso dos bens da comunidade.
         Em 13 de fevereiro de 1790, um novo e mais duro golpe as atinge: todos os votos religiosos proferidos até ali se tornaram inválidos, além de ficar proibida a profissão de votos religiosos na França daí para frente, e os religiosos são convidados a retornar para as casas de seus pais, se quisessem, podendo os outros continuarem a morar nos seus conventos, agora na condição de funcionários do estado, recebendo salário do Estado. Era um salário era muito baixo; uma forma de desestimular os pretendentes a essa vocação, inclusive uma carmelita chegou a ironizar: “o Estado agora nos priva de nossos votos, exceto o de pobreza!” A noviça, Constança de Jesus, que estava prestes a proferir seus votos, é proibida de fazê-lo, por isso permanecerá sempre noviça, sem se afastar da comunidade.
         A situação era delicada, e exigia prudência. A França se tornara uma monarquia constitucional, com a Carta de 1790, que garantia amplos poderes ao rei, dentro de um sistema político mais moderno e adequado aos tempos. Porém, cercado por homens arrogantes, sediciosos e oportunistas baratos, o rei e a rainha, num momento de loucura, resolvem fugir às ocultas para o estrangeiro, para chefiar uma contrarrevolução, sendo aprisionados na cidade de Varennes, perto da fronteira. Foi uma desmoralização, não só para o casal real como para todos os moderados, que ainda tentavam dar prosseguimento às reformas necessárias ao país, inclusive muita gente da nobreza, da burguesia e do clero, mas o caldo fora entornado e os radicais não tardaram a se aproveitar disso. Lidera-os Maximiliano Robespierre, do grupo dos Jacobinos.

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O homem errado, na hora errada no lugar errado. Luis XVI é preso à noite de 21 de junho de 1791, quando sua comitiva fizera uma parada para a troca de cavalos, na cidade de Varennes-en- Argonne. No centro, a rainha tenta controlar a situação e acalmar o pânico dos filhos; atrás, Luis XVI aperta as mãos num sinal visível de preocupação e medo, enquanto uma multidão enfurecida tenta invadir a sala onde faziam a refeição.


         Os efeitos desses acontecimentos na vida dos religiosos logo se fez sentir: uma nova decisão da Assembleia, em agosto de 1792, determina a dissolução de todas as congregações e a expulsão dos religiosos que ainda morassem em conventos.  A comunidade carmelita de Compiègne, então dirigida pela priora Madre Teresa de Santo Agostinho, resolve fazer um ato coletivo de consagração a Deus, “para que a Divina Paz, que o seu filho Jesus, veio trazer ao mundo, traga a harmonia nas relações entre a Igreja e o estado”. Ou seja, elas estão dispostas a dar sua vida para pacificar a sociedade e salvar o catolicismo na França. Dizem os relatos, que na hora na hora da consagração duas freiras mais velhas recuaram, assustadas com a possibilidade da guilhotina, mas que no dia seguinte aderiram de boa fé, tornando-a uma decisão unânime.

Da Clandestinidade ao Cadafalso

         Em 14 de setembro de 1792, as carmelitas de Compiègne são expulsas do seu convento e retornam à vida civil, indo morar em pequenos grupos de quatro irmãs, em diferentes casas de família, que se dispuseram a recebê-las. Nesses pequenos grupos, elas, mesmo fora do claustro e sem seus hábitos, procuram manter os rituais de convivência comunitária e litúrgica prescritos na regra, renovando a cada dia seus votos e a sua consagração especial. Assistem à missa, todas juntas, numa igreja próxima, entrando discretamente por uma porta lateral. O povo e as autoridades de Compiègne convivem tolerantemente com aquilo. Não querendo despertar ódios desnecessários, e ainda porque os bispos franceses liberaram, elas prestaram o juramente de “Igualdade e Liberdade”, justo quando elas estavam sendo privadas da liberdade de seguir a vocação que escolheram, mas recusaram-se a jurar a Constituição Civil do Clero.
         Entretanto a paz não podia durar muito, em um regime que acolhera a irracionalidade da natureza para dirigir a seres racionais, e por isso, embora os exércitos “revolucionários”, fazendo uso da boa estrutura militar montada pelo Antigo Regime, consigam vitórias importantes no exterior, longe de suscitar maior flexibilidade e tolerância interna, o que seria mais “racional”, ao contrário, desperta ainda mais o desejo de vingança e sangue, justificada por racionalizações que ocultam um cipoal de medos obscuros, absolutamente irracionais, que povoavam a mente dos condutores da revolução, em nome da razão, como se uma obsessão persecutória incontrolável se apoderasse, ao mesmo tempo, a mente de todos os seus dirigentes, agravada pelo assassinato de um de seus principais: o médico, pasmem!, e jornalista Jean-Paul Marat, em 13 de julho de 1793.
         No Parlamento, em 10 de junho de 1794, é aprovada a lei de 22 do prarial/ano II. Um dos entusiastas do uso indiscriminado da pena de morte e de métodos terroristas contra os opositores do regime, o deputado Pierre-Gaspard Chaumette, da ala radical dos sans-cullotes, ele era filho de sapateiro, num de seus discursos na tribuna, dirá: “Que a Montanha santa (o grupo jacobino se dizia “a montanha”, porque seus deputados ficavam nas cadeiras da parte mais alta do anfiteatro onde os deputados se reuniam, note-se o termo de conotação religiosa “santa”, de acordo com as conveniências de um grupo que se dizia laicista) se torne um vulcão e devore os nossos inimigos! Nada de trégua, nada de misericórdia com os traidores! Ponhamos entre eles e nós, a barreira da eternidade”. O medo da traição, entre esses homens, era quase palpável! A guilhotina se torna o motor principal do processo, e as cabeças começaram a rolar indiscriminadamente. O tolo arremessa o pedregulho para o alto, e este lhe racha a cabeça; Chaumette, será um dos primeiros a ser guilhotinado, em abril de 1794.
         A fúria terrorista da República Francesa atinge as carmelitas em cheio. Visando destruir fisicamente os inimigos internos, sem exceção, os “revolucionários” começam uma caçada paranoica pelo país, atrás de qualquer um que manifeste qualquer indício de oposição ao regime de “liberdade” que se queria impor (?!), ainda que, objetivamente, não contrária às leis, mas antes a uma “mentalidade” vigente, com era o caso das carmelitas. No alvorecer da liberdade, na França, era proibido pensar. Uma ordem de inquirição e aresto, justificada pela luta fanática do governo contra o “fanatismo religioso”, foi assinada contra as carmelitas de Compiègne, em 20 de junho de 1794, e cumprida quase imediatamente. Nos dias 23-24 elas são presas, e levadas a um convento, transformado em prisão. Um sinal dos novos tempos!
         As acusações contra elas, muito genéricas, são sustentadas pelas descobertas de alguns objetos “comprometedores” como cartas, onde alguém criticava a o andamento da “revolução”; uma imagem do Coração de Jesus, devoção iniciada cem anos antes pela freira Margarida Maria Alacoque, que estava muito em voga naquela época, e que, por acaso, também era muito venerada no interior do país, inclusive na região da Vendeia, onde se iniciara uma revolta, chefiada por nobres e padres, contra os abusos da Revolução. Mas, para a elite “revolucionária” não existe coincidência, “tudo é uma conspiração”. Foi encontrada ainda uma imagem de Luis XVI.
         No transporte para Paris, onde seriam julgadas, elas tiveram que passar três dias em carroções desconfortáveis, cercadas por uma guarda armada, para impedir que elementos vis, insuflados pelo governo, as trucidassem. Chegadas em Paris, foram levadas à famosa Conciergerie, uma prisão de onde saíram milhares de pessoas para ser guilhotinadas, no curto espaço de um mês e meio, que durou o Terror. Na chegada, a freira mais velha, Carlota da Ressurreição, manca, com 80 anos, com as mãos amarradas, não consegue descer do carroção, e as outras, também atadas, não podem ajudá-la, e é empurrada de lá abaixo por um dos guardas da prisão, causando protestos da multidão que até ali hostilizava as freiras. Dizem que, com o rosto sangrando, ela ainda agradeceu ao seu agressor por não tê-la matado ali mesmo, impedindo-a do martírio na guilhotina, junto com as outras.
Lá, dentro, vestidas com seus hábitos, arrumados como que para agravar a acusação contra elas, encontram, também presa, uma comunidade de monjas beneditinas inglesas, que haviam se transferido para a França, fugindo da intolerância religiosa em seu país, e que serão as principais testemunhas desse período na vida delas, e darão ao mundo o conhecimento da incrível virtude dessas mulheres. Na prisão, juntas, elas retomam, imediatamente, a sua vida conventual, rezando o ofício, renovando votos, fazendo as reuniões de praxe, como se nada demais tivesse acontecendo. A sua tranquilidade, e até a sua alegria, no momento de irem cumprir a pena, causou viva impressão em todos, uns poucos, que lá estiveram presos com elas e sobreviveram.
Em 16 de julho elas demonstram um grande regozijo; era o dia da festa de Nossa Senhora do Monte Carmelo, e ao saberem que seriam levadas a julgamento no dia seguinte, aproveitaram até para cantar uma paródia da Marselhesa, o hino oficial da revolução, e, até hoje, o hino nacional francês, composta por uma das freiras. No dia seguinte, 17 de julho, elas são levadas à julgamento, uma mera formalidade, uma paródia grosseira. Seu acusador, Antoine Fouquier de Tinville, é um burocrata apaixonado, intolerante e um homem sedento de sangue, que abusava de sua magistratura, para compensar seu sentimento de inferioridade, por sua origem na pequena nobreza. Ele acusou as irmãs de organizar reuniões conspiratórias contra a revolução (a paranoia dos revolucionários), de preservar sua organização conventual, de se corresponder com fanáticos, de guardar escritos que tramavam contra a liberdade. Tudo circunstancial e muito passível de interpretação.
Para que se tenha uma ideia do “circo”, elas se apresentaram diante do juiz do “Tribunal Revolucionário” sem nenhum advogado de defesa, sem júri, e a única testemunha arrolada não compareceu. Um dos destinatários das cartas das carmelitas, o senhor Mulot, é denunciado, pelo promotor, como sacerdote “refratário” – sacerdote que se recusara a jurar a Constituição Civil do Clero, e que por isso eram considerados inimigos da Revolução e mortos – embora ele fosse casado e vivesse regularmente com sua esposa. Tudo feito às pressas, sem nenhum cuidado com as mais elementares normas do direito, da justiça e da verdade. Ainda assim o juiz acolheu a denúncia e procedeu a leitura da sentença, condenando-as à guilhotina, imediatamente. Uma irmã, nessa ocasião, lhe pergunta o que ele, juiz, entende por “fanático”, e ele responde: “entendo isso como o seu apego a essas crenças pueris, e suas tolas praticas religiosas”. Noutras palavras, ser cristão, era crime passível de morte. Estamos a um passo do moderno conceito de genocídio.
Uma hora depois de terminado o “julgamento”, as freiras estavam na carroça padrão, a infame “bière des vivant” (expressão com um duplo sentido, pois “bière” quer dizer cerveja, bebida que alegra, e era grande a alegria dos que viam o carro dos condenados, indo ao cadafalso, mas o termo remete também à expressão “meter na cerveja”, que significa, para os franceses, “por no caixão”, o que fatalmente ocorreria com os passageiros), com corrimão vazado, para deixar os condenados visíveis e entregues à fúria dos passantes, que não raro lhes atiravam ofensas, piadas, frutas podres e o que mais tivessem á mão. Antes de saírem da prisão elas têm uma despedida emocionada com as beneditinas inglesas, que pedirão seus antigos trajes de prisão e os levarão como relíquias para a Inglaterra – hoje esses trajes estão na cripta do atual Carmelo de Compiègne.
Um parágrafo. Sob o patrocínio da Igreja Católica, supostamente nas trevas, senão a própria treva, ingleses e franceses se confraternizam com sinceridade e amor mútuo, enquanto à luz do liberalismo e do iluminismo triunfante, trazidos pela Revolução Francesa e pela Era Napoleônica, ingleses e franceses se mataram durante 23 anos, arrastando outros povos na luta, na qual pereceram mais de 3 milhões de pessoas, entre civis e militares. Mais tarde viriam as guerras coloniais, duas guerras mundiais, dois genocídios imensos (armênio e judeu-eslavo). Tudo em nome do progresso.
Ao todo eram dezesseis pessoas, a saber: Madre Teresa de Santo Agostinho, a priora; irmã São Luis, subpriora; Irmã de Jesus Crucificado; Irmã Carlota da Ressurreição; irmã Teresa do Santo Coração de Maria; ex-priora Madre Henrieta de Jesus; Irmã Teresa de Santo Inácio; Irmã Julia Luisa de Jesus; Irmã Maria Henrieta da Providência; Irmã Eufrasia da Imaculada Conceição; Irmã Constança; Irmã Maria do Espírito Santo; Irmã Santa Marta e Irmã São Francisco Xavier, e mais duas mulheres que nem eram freiras, mas serventes do convento, que preferiram, livremente, seguir as suas patroas (!): Catarina e Teresa Soiron.
Na carroça dos condenados elas atraíram toda sorte de olhares, alguns reprovativos outros respeitosos, a até solenes. Conta-se que alguns padres, disfarçados, seguiram a carroça dando-lhes discretamente a absolvição, à distância, enquanto elas cantavam o Miserere – versão cantada do Salmo 50 (ou 51), entoado nos momentos de penitência e arrependimento dos pecados – e a Salve Rainha até que chegaram à praça do Trono Derrubado, atual Praça da Nação, onde estava montado o cadafalso. O carrasco que as esperava era o famoso Charles-Henry Sansão, executor de quase três mil pessoas, durante a Revolução. O que aconteceu em seguida é quase indescritível.


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Elas descem da carroça e cantam o Te Deum, um hino solene de ação de graças. Após o que começam a cantar o hino Venit Creator, hino ao espírito santo, que sempre é cantado no momento que as freiras fazem seus votos. Madre Teresa de Santo Agostinho se adianta e pede para ser guilhotinada por último, a fim de poder encorajar as suas filhas. Sansão concorda. A Irmã Constança, a mais jovem, é a primeira a ser executada. Ele se ajoelha diante de Madre Teresa, pede-lhe a benção e autorização para morrer, e então sobe ao cadafalso cantando o Laudate dominum omnes gentes (o Salmo 117 ou 116, um canto de alegria, cantado toda vez que se inaugurava um Carmelo). Uma após a outra, todas fazem o mesmo ritual, deixando a multidão na praça pasma, entre incrédula e edificada, ante o que via.
Seus corpos e cabeças foram jogados numa vala comum do cemitério de Picpus, que abrigará os corpos de muitos dos “justiçados” durante o Terror, junto com 108 padres, 136 monges, 108 nobres, 178 militares, 579 homens comuns, 51 mulheres nobres, outras 7 freiras e 123 mulheres do povo.

Epílogo

Dissemos, no início que a comunidade do Carmelo de Compiègne era formada por 21 freiras, no início da Revolução, e, no entanto, só 16 foram executadas; a razão é que duas delas morreram em 1791. Outras duas, Irmã Estanislava da Providência e Irmã Teresa de Jesus, no momento das prisões, haviam saído de viagem, para uma cidade distante, para acudir à irmã de Teresa de Jesus, que enviuvara. Teresa de Jesus Morrerá aos 82 anos, em 1830, e a Irmã Estanislava se perderá da história. A última delas, Irmã Maria da Encarnação, estava em Paris na ocasião, resolvendo umas pendências pessoais com o estado francês. Ela continuou como carmelita, e foi uma grande continuadora do culto à memória de suas amigas e irmãs na fé e de profissão. Irmã Teresa morrerá em 1836.
Muitos anos após esse episódio ainda se falará do festivo heroísmo dessas freiras, que tornou a sua execução um dos assuntos mais abordados pela literatura e a história dessa época, tornando-se inclusive tema de um filme clássico: Dialogue des carmélites, baseado numa obra do grande dramaturgo francês Georges Bernanos, disponível legendado no You Tube .
E os carrascos das freiras?

Vórtice Sanguinholento


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Na noite de 27-28 de julho de 1794, um grupo de golpistas formado por conservadores e radicais, invade violentamente um quarto do Hotel Ville de Paris, onde se encontrava a elite dos Jacobinos, provisoriamente em desgraça em virtude de acusações de corrupção e incompetência financeira. Nessa ocasião, segundo alguns, o gendarme Charles-André (com licença da má palavra) Merda, desfere um tiro contra o rosto de Roberspierre, quebrando-lhe a mandíbula - outra versão diz que o tiro foi uma tentativa de suicídio. Seu irmão, Augustin Robespierre, tenta se suicidar, pulando da janela do quarto, mas apenas quebra a perna.


Quem nunca teve piedade de ninguém não poderia esperar piedade. Mesmo ferido, Robespierre é julgado imediatamente, nas mesmas condições que, rotineiramente, se oferecia às suas vítimas: sem advogado, sem testemunhas, sem provas, sem seriedade, e sumariamente condenado à morte na guilhotina.
  
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         Eis o admirável mundo novo que surge do fim das trevas da religião, da fé e do cristianismo, iluminado pelo sol resplandente da luz da razão humana. É a exaltação mais esculachada possível da morte. Robespierre, o pequeno burguês, o advogado, que se tornou senhor absoluto da França, e aboliu, ou ajudou a abolir, as normas mais elementares do direito e da justiça, está de pé, junto à escada do patíbulo, com uma atadura envolvendo a sua cabeça, na manhã do dia 28 de julho, enquanto se assiste a exibição das cabeças de 21 de seus companheiros, que lhe antecederam (o mesmo número de carmelitas em Compiègne no início da Revolução), para a multidão delirante, tal como aconteceu, durante o seu “reinado”, com quem se lhe opunha. Na hora de guilhotiná-lo o carrasco tirou-lhe a atadura que lhe envolvia o rosto, causando uma dor intensa lancinantemente, que o fez gritar, até o golpe da lâmina acabar com aquilo. Como aconteceu com as carmelitas, seu corpo foi jogado numa vala comum, no cemitério de Errancis, e sobre seu corpo foi atirado cal, para que nem seus ossos restassem como vestígio da existência de sua pessoa nesse mundo. Mais tarde um anônimo escreverá um epitáfio a seu respeito: “Passante, não se apiede de eu estar aqui, pois se eu não estivesse morto, seria você quem estaria aqui”.

 
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         Filho da pequena nobreza rural, Antoine Fouquier de Tinville tinha tudo para fazer uma boa carreira como advogado, mas a ambição falou mais alto, e uma inversão financeira desastrosa levou de roldão a sua banca de advocacia, empurrando-o para cargos sem importância, dos quais veio tirar-lhe a Revolução de 1789. Ressentido com o seu passado e com seus reveses pessoais, sem medir meios para ascender na carreira, ele logo se aproxima dos elementos mais radicais e se torna um dos promotores de justiça mais encarniçados da França. Ele foi, por assim dizer, a “alma” dos tribunais durante o regime do Terror. Seu retrato aparece sempre com uma das sobrancelhas bem erguida, que, segundo os psicólogos da leitura corporal, é uma manifestação típica de desconforto psicológico e ameaça.


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         A sua subserviência covarde ao Terror, e o seu carreirismo oportunita, ficaram patentes quando foi um dos que aprovou a condenação à morte de Robespierre e seus companheiros, para quem trabalhara até ali. Mas não escapou à devassa que se seguiu. Ele foi preso sob a acusação de que levara a juízo centenas de pessoas desconhecidas, indiscriminadamente arroladas em um mesmo processo; de levar a julgamento e condenar centenas de pessoas sem uma acusação clara formada; de levar à execução pessoas que nem sequer haviam sido julgadas; por fazer com que pessoas não condenadas fossem executadas no lugar de outras já condenadas; de precipitação no julgamento e condenação de muita gente; etc. Para comprovar tais absurdos foram ouvidas de 29 de março a 1° de maio de 1795 cerca de 419 testemunhos, sendo 223 a favor – a sua tese de defesa foi condenar os seus superiores, já mortos, em especial Robespierre, que o estaria perseguindo (!), uma tática que seria repetida pelos genocidas nazistas, 150 anos depois.  Fouquier teve o que nunca propiciou às suas vítimas: um julgamento justo, mas não foi o suficiente para salvá-lo da condenação à morte. Até o último momento ele alegou inocência, e ainda “profetizou” que no futuro seria reconhecida a sua inocência; o que, até hoje, não aconteceu. Ele foi guilhotinado no dia 7 de maio de 1795, junto com outras 15 pessoas; o mesmo número das carmelitas guilhotinadas. Acima a mais famosa vítima do impiedoso promotor: a rainha Maria Antonieta, bastante idealizada pelo pintor.

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