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Aarão - Santo Expedito - Santa Bernadette

AARÃO

Prof. Eduardo Simões

         Aarão é o irmão mais velho de Moisés, e seu braço direito durante a missão deste de libertar o povo hebreu do Egito, e levá-lo à Terra Prometida, segundo o relato do Primeiro Testamento, baseado em antigas tradições, por vezes conflitantes.
         O Primeiro Testamento nada nos revela sobre a infância de Aarão, e os dados sobre sua ascendência são contraditórios, pois segundo 1 Cro 5,29 ele seria bisneto de Levi; mas Levi entrou no Egito junto com Jacó, e Aarão saiu de lá com Moisés. Entre eles há um período de centenas de anos! Porém em Ex 6,23 ficamos sabendo, por meio de uma adição meio ‘forçada’ no texto que ele se casou com Isabel, filha de um tal Aminadab, e com ela teve quatro filhos: Nadab, Abiú, Eleazar e Itamar.
         Juntando vários trechos, ficamos sabendo que Aarão é o caçula da família levita de Amram e Jocabed, tendo por irmãos Maria, ou Mirian, a mais velha, e Moisés. O Êxodo fala a primeira vez de Aarão quando do chamado de Moisés, no Monte Sinai, como uma alternativa à incrível insegurança dele, em relação aos seus dotes de oratória, que chega às raias da impertinência (Ex 4,14). Deus, então, recomenda que ele tome Aarão como porta-voz: “ele falará por ti ao povo; ele será a tua boca, e tu serás para ele um Deus” (4,16). Graças a uma revelação de Deus, Aarão vai ao encontro do irmão no Sinai, onde fica a par de sua missão (4,27) e imediatamente reúne os anciãos israelitas (4,29), e posteriormente o povo, diante do qual Moisés fez “sinais” (4,30), provocando a adesão de todos.
         Nesse momento a narrativa fica meio truncada: em 4,20, Moisés parte com sua família em direção ao Egito, ao mesmo tempo em que Aarão, avisado por Deus, se põe a caminho, ao encontro de Moisés. Deveriam, portanto, se encontrar no meio do caminho, mas se encontram na “montanha de Deus” (4,28), de onde Moisés partira já de algum tempo (?).

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         De 5,1 a 6,1 narra-se o primeiro encontro dos irmãos com o faraó e a primeira decepção daqueles, porém, em 6,2 começa outra vez a narrativa da vocação de Moisés, com um dado curioso, Deus agora dá uma explicaçãozinha sobre o porquê de seu novo nome ‘Iahweh’ (Eu Sou), quando os antigos patriarcas o chamavam por El Shaddai (6,3) (1), como algo a ser ultrapassado, pela nova revelação a Moisés. É curioso que nesse texto, aparentemente deslocado da narrativa, aparece uma árvore genealógica onde se colocam os descendentes de Ruben, em primeiro lugar (6,14), Simeão, em segundo (6,15) e de Levi, ancestral de Aarão, em terceiro (6,16), sem citar mais nenhum dos filhos de Jacó, patriarcas fundadores das 12 tribos. Será que havia alguma contestação da tribo de Ruben quanto à primazia sacerdotal de Levi, uma vez que, pelo costume do antigo patriarcado cabia ao filho mais velho herdar o carisma sacerdotal do pai da família, mas como se sabe Jacó retirou os direitos de primogenitura a Ruben (Gn 49, 3-4), e Simeão e Levi foram, juntos, parcialmente amaldiçoados por uma ação violenta, e por isso dispersos no meio das tribos (49,5-7) – no caso dos levitas isso foi proveitoso ou adequado em função de sua missão sacerdotal entre o povo. O texto também dá uma indicação sobre a idade de Moisés e Aarão quando se dirigiram à primeira vez ao faraó: 83 e 80 anos de idade, respectivamente.
         Ao longo das tortuosas tentativas de convencer ao faraó de deixar os hebreus sair do Egito, Aarão teve uma a participação relevante. Ele e o irmão eram sempre convocados juntos perante o rei, ambos ouviram de Deus as últimas instruções sobre como proceder ao sair do Egito, e coube a ele tomar a iniciativa na produção de várias entre as dez pragas Ex (7,14 ss). A ambos era atribuída a libertação do povo e ambos sofreram, juntos as reprimendas do povo amotinado, toda vez que o faraó reagia ao pedido de libertação do povo, ou no deserto, quando a saudade do Egito batia no coração do povo, ainda em processo de conversão.

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         Quando deixaram o deserto de Sin – local incerto – o povo, em retirada, teve que fazer frente a um poderoso exército amalecita – povo de origem incerta, só mencionado na Bíblia. Nesse combate, acontecido em Refidim – local de origem incerta – houve um fato curioso, típico de narrativas lendárias, onde por meio de um fato muito pitoresco, em geral não acontecido nos seus mínimos detalhes, se procura marcar uma grande lição moral ou espiritual; os israelitas só conseguiam predominar contra os seus inimigos, quando os braços de Moisés ficavam erguidos sobre sua cabeça, em sinal de súplica a Deus, o que nos faz pensar em uma mentalidade um tanto mágica. Como o inimigo era numeroso, e Moisés farto dos anos, seus braços não suportavam ficar elevados muito tempo, por isso ele sentou-se numa rocha, com Aarão de um lado e Hur do outro, segurando os seus braços, até a vitória definitiva de Israel (Ex 17,12-13). Essa passagem nos mostra duas coisas: o poder da intercessão e a estreita aliança que deve haver entre o poder civil e o religioso no seio de um povo, sem necessariamente precisar haver uma religião oficial.
         Quando, finalmente, chegaram ao Monte Sinai (19,1-2), Aarão estava entre aqueles a quem foi dado ver a Deus (“eles viram o Deus de Israel”), (24, 9-11) – uma passagem que está em contradição com outra, (33,20), onde isso é estritamente proibido. Após o que, ele desceu, junto com os outros que viram a Deus – os setenta e dois auxiliares de Moisés – enquanto aquele recebia os Dez Mandamentos. Foi então que ele se meteu no episódio mais constrangedor de sua carreira de sumo-sacerdote do Deus verdadeiro.


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         Moisés demorava a descer da montanha. Segundo uma das narrativas, ele passou 40 dias lá encima (24,18). Essa demora começou a impacientar o povo e ao grupo que disputava, com Moisés, o poder de reger o povo, e, querendo criar sua própria versão de culto, sem, aparentemente, abandonar ao Deus já revelado a Moisés e aos anciãos, insistiram junto a Aarão para que se lhes construísse um bezerro de ouro; e tanto insistiram, o pecado não se cansa, que ele acabou cedendo e fundindo, pessoalmente (ele seria metalúrgico?) um bezerro de ouro, que, segundo o texto, seria uma representação de Yahweh, e não um deus autônomo, como se pode entender de (32,5). O bezerro seria como um sinal de Iahweh, como o era a Arca da Aliança, que também tinha representação de criaturas (dois querubins) sobre a sua tampa, só que dotado de uma eficácia mágico-salvífica, como se fora o próprio Deus.
         Aarão, aparentemente, cedeu demasiado rápido. Certamente que já havia conversado muito com o irmão sobre a correta forma de adorar ao “novo” Deus, tão recentemente redescoberto, a não ser que essa narrativa tenha sido inserida no texto, posteriormente, por um grupo que questionava o sacerdócio de Aarão, e queria apresentá-lo mais frágil, mas que não deixa de ter um aviso espiritualmente muito importante: durante a nossa caminhada espiritual muitas tentações aparecerão, é preciso resistir-lhes e vencê-las; Aarão não conseguiu. Seja como for, apesar de duramente questionado por Moisés, ele não perde o sacerdócio nem sofre nenhum castigo em especial, embora a esse respeito duas tradições apareçam no Pentateuco. Em Êxodo 32, 21-24, ele, como Adão no Gênesis, se justifica que fora pressionado ou induzido pelo povo, e tudo fica bem, mas em Deuteronômio Moisés revela que Deus, “enfurecido”, pretendera “exterminá-lo”. Há claramente dois autores, com visões diferentes, narrando a mesma história. Apesar de tudo, Aarão e seus filhos são sagrados Sumo Sacerdote e sacerdotes, respectivamente, no capítulo 39, com muita pompa e circunstância.
Entretanto, não se encerrara o ciclo de desavenças entre os irmãos. Em Números 12, aparentemente numa época posterior ao caso do bezerro de ouro, um episódio grave os envolve, quando Moisés desposa uma mulher cuchita.
Pelo contexto, deduz-se que Moisés ficara viúvo e desposara uma segunda mulher, que, pela designação parecia pertencer ao país de Kush, um reino negro que existia ao sul do Egito, e com o qual os egípcios travavam relações intensas. Essa mulher, certamente uma negra, poderia ser uma prosélita, uma pagã convertida, o que pode ter desagradado ao nacionalismo religioso de Aarão e sua irmã mais velha, Maria, que se puseram a murmurar contra Moisés – outros autores resolvem essa pendência de outra forma: em Hab 3,7, os termos Cusã e Madian são usados para designar a mesma região, e nesse caso a oposição seria contra o casamento de Moisés com Séfora, antes do início de sua missão libertadora, e o texto estaria aí deslocado o artificialmente acrescentado para “queimar” um pouco o “filme” de Aarão. O resultado, porém, foi algo semelhante ao do bezerro de ouro: e Aarão é poupado, enquanto Maria tem que amargar sete dias de lepra e isolamento, antes de ser readmitida no seio do povo.
Outra tese, igualmente válida para esse desfecho, é que Maria tomou todas as iniciativas na crítica ao irmão, cabendo a Aarão apenas a falta de ter concordado com ela ou não lhe ter aconselhado devidamente – o que está de acordo com o temperamento claudicante que demonstrou no caso do bezerro de ouro; nesse sentido ele é ao mesmo tempo a figura de Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote por excelência, e o protótipo de Pedro, o Sumo Pontífice da Nova Aliança, que também hesitou e caiu na “hora H” – seja como for a sua petição junto a Moisés foi fundamental para a cura da irmã (Nm 12, 11-12). Deus encontrasse muito além das fraquezas humanas.
O exercício da função sacerdotal, com o poder que lhe era inerente, não passou desapercebido de importantes membros da comunidade tribal israelita, em especial na tribo dos rubenitas, que, segundo a tradição, descendiam de Rúbens, o filho mais velho de Jacó-Israel, e que, pelas tradições humanas da época, possuíam a prerrogativa do sacerdócio e da liderança sobre os irmãos, assim como de outros grupos de levitas, que se amotinaram contra o sacerdócio e a liderança de Moisés e Aarão, liderado pelos chefes de grandes famílias tribais Coré (levita), Datan e Abiron (rubenitas), conforme é relatado em Nm 16 – é curioso notar que o texto em nenhum momento faz alusão ao deserdamento de Rúben, pelo patriarca Jacó, em seu oráculo final (Gn 49,3-4), para criticar as pretensões dos rubenitas nesse episódio, reforçando a tese, escorada também em outros elementos (linguagem e eventos posteriores, inclusive que não se realizaram(=glória de José)) que o texto das benção de Jacó, por sinal muito corrompido, foi um acréscimo posterior.
Seja como for houve uma disputa que acabou num desastre cataclísmico: a terra se abriu para engolir os amotinados e as suas famílias (Nm 16,27-35). Estamos ainda no tempo da moral nômade tribal, onde a punição abrange não só o autor da ofensa como toda a sua família. E assim cessa, após três anos da saída do Egito, a narração sobre detalhes da vida de Aarão, e nada se sabe sobre o que aconteceu nos 37 anos seguintes de vagueio pelos desertos do Oriente Médio. Até que no trigésimo nono ano, às vésperas da entrada dos hebreus na Terra Prometida, o trecho volta a concentrar-se nele, e em seus irmãos, para descrever uma desgraça: nenhum dos três, após a sua espetacular aventura, entrará na Terra Prometida.                                       
 Em primeiro lugar Maria, a irmã, falecida na localidade de Cades – provavelmente a atual Ain Qudeirat, um dos poucos lugares no deserto de Neguev que contem fontes com água suficiente para abastecer tanta gente. Seu falecimento, descrito de forma rápida e seca oculta o papel muito importante que ela teve nessa travessia, quando é chamada, pelo profeta Miqueias, como uma das condutoras do povo de Israel, lado a lado com Moisés e Aarão (6,4), mostrando que o seu papel foi se reduzindo ao longo da tradição mais patriarcal, que se criou após a sedentarização dos hebreus na Palestina.
Segundo Nm 20,1-13, o único lugar onde se fala da morte dela, após a qual segue-se a célebre questão das águas de Meriba, mostrando a estreita ligação entre ela e as águas (conferir nela acompanhando o cesto com Moisés, ao longo do rio Nilo, e o seu canto de vitória após o Mar Vermelho engolir o exército egípcio), ocorre algo grave que faz Moisés e Aarão perderem as boas graças de Deus, sendo por isso, assim como Maria, excluídos do grupo colonizador da Terra Prometida. O que aconteceu realmente não está claro; julga-se que Moisés, por ter batido duas vezes na rocha da qual emanou água, teria demonstrado com esse gesto, falta de confiança ou impaciência com o tempo de Deus, mas isso é só conjectura, e não explica a exclusão de Aarão – segundo o Sl 106 (105), 33, Moisés, nessa ocasião, pressionado pelo povo, irritou-se, e “falou sem refletir”. Mas o quê? Por que Aarão ficou envolvido? Para complicar, temos em Êxodo 17,1-7, o mesmo relato das águas, num contexto totalmente diferente, aparentemente contraditório, que revelaria, na melhor das hipóteses, duas histórias ou duas tradições diferentes, descritas separadamente nos dois livros.

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Segundo Nm 20, 22-29, Moisés, seguindo ordens diretas de Deus, sobe com Aarão e um filho deste, Eleazar, e sobem o Monte Hor – provavelmente o atual Jebel Harun, com 1.435 m de altura, na atual Jordânia – e lá ele despe as vestes sacerdotais de Aarão e as veste em Eleazar, após o que, Aarão morre, e, aparentemente é sepultado ali – Moisés e Eleazar descem sozinhos. Segundo ainda 33,38 a sua morte se deu no quadragésimo ano da saída do Egito, no primeiro dia do quinto mês, aos 123 anos (percebem a sequência numérica?); mas em Dt 10,6 o lugar da morte de Aarão é Mosera. Um pequeno detalhe que não diminui em nada o papel e a incrível aventura pela qual passaram os três irmãos, de serem instrumentos de Deus na condução do seu povo, para criar a mais poderosa tradição religiosa do mundo, até os dias de hoje.

No Segundo Testamento, Aarão é citado apenas em Hebreus 5,4 e 7,11, como um exemplo da gratuidade da escolha de Deus, e do sacerdócio imperfeito.


SANTO EXPEDITO (303)

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Soldados romanos do século III, no tempo em que Expedito serviu ao exército.

Embora o culto desse santo seja conhecido desde a Idade Média, foi apenas em 1781 que o seu nome foi colocado na lista de um martirologio italiano, passando a fazer parte oficialmente da lista dos santos católicos. Porém, ao considerarmos que a data popular do seu martírio é o início do século IV, devemos convir que é um personagem sujeito a controvérsias.
A primeira delas se refere ao seu nome verdadeiro, que, segundo alguns, seria Elpídio, e que teve o seu nome mudado pelo fato de ele pertencer a uma unidade de infantaria ligeira romana, onde os soldados eram ditos expediti (rápidos), por não carregarem bagagem, tornando-se mais aptos para atuarem numa emergência ou em operações de envolvimento, as mais perigosas, enquanto que o legionário comum, os impediti (impedidos), sobrecarregados com a bagagem, deslocavam-se mais lentamente, marcando posições fixas, servindo como unidades de choque.
A segunda é que não se sabe nada sobre a sua vida, sua origem e a data de seu nascimento. A única informação “segura” seria a data e o local de seu martírio: 303, na cidade oriental de Melitene (Não confundir com Militene), atual Malatya, na Turquia, para onde fora deslocada a legião que ele comandava, a XII Fulminata (Fulminante), a fim de proteger as fronteiras orientais do Império contra invasões bárbaras e do poderoso Império Persa, que disputava com Roma a influência sobre a Armênia, na zona do Cáucaso.

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Trecho da coluna de Marco Aurélio, que mostra um episódio célebre envolvendo uma unidade da XII Fulminata, durante as Guerras Marcomanas, no século II, quando uma chuva torrencial inesperada salvou uma unidade dessa legião do massacre certo, feito que os pagãos atribuíam aos sortilégios de um mago, mas que os cristãos atribuíram a ação de Deus, atendendo a oração de vários soldados dessa unidade, que já eram cristãos. Esse episódio, segundo alguns acelerou a conversão de Expedito, mas isso é improvável, pois esse fato aconteceu mais de cem anos antes da data de seu martírio – vê-se, no canto direito, um personagem grande, cabeludo e barbudo, misterioso, de braços abertos, representando o deus das chuvas.

        O que ficou mais conhecido dele foi a intensa luta espiritual, que ele teve de travar consigo mesmo, às vésperas de sua conversão. Como militar, e mais ainda um militar romano sincero, que provavelmente chegara ao posto de tribuno, comandante de legião, após uma vida inteira de dedicação à Roma e aos seus símbolos pagãos, e que sabia o quanto lhe custaria a conversão a uma seita condenada pelo estado, a quem ele sempre servira – o imperador romano da ocasião era Diocleciano, o pior de todos os perseguidores do cristianismo nascente. Sem dúvida que não era uma decisão a ser tomada de afogadilho, mas que também não poderia ser postergada por muito tempo, pois certamente algo muito impactante lhe acontecera para fazê-lo mergulhar nessa crise, e ele, como soldado, fora treinado para agir com presteza.
        Conta ainda a “lenda” que, nesse momento, ele ouviu alguns corvos próximos que, com o seu grasnado, semelhante à pronúncia do advérbio de tempo latino “cras”, que quer dizer amanhã, pareciam querer propositalmente afasta-lo de seu santo desejo de conversão. Não esquecer que o corvo, na Europa, faz o papel do urubu ou abutre em outros continentes: ave carniceira, necrófaga por excelência, facilmente associada às forças do mal, sempre presente em história de bruxas e demônios, assim como as serpentes.
        Esse episódio lembra que todos os que precisam tomar uma atitude séria e urgente devem se cingir de uma grande humildade, de uma ampla abertura de espírito, para acatarem o auxílio de última hora, que pode vir da mais inesperada ou desacreditada fonte, e uma vez concluído o processo de reflexão tomar uma decisão firme e constante, e para isso nada melhor que a oração e o conhecimento da vida dos santos, do passado e do presente, pessoas que, assim como nós, enfrentaram situações limites e mantiveram-se, sinceras e coerentemente ligadas às suas decisões originais. O fundamental, eu creio, é a sinceridade, que, inclusive, será o motor da ação ágil.
        Ao final, Expedito se converte, e começa a pregar corajosamente a nova religião. Ao saber disso o Imperador manda que se use da lei, e Expedito é acusado e condenado por alta traição, afinal ele era comandante de tropa, e, segundo os usos da época, foi chicoteado e por fim decapitado, como era regra para um cidadão romano, embora isso não prove nada, pois já nesse tempo estava valendo o decreto de Caracala, de 212, que transformava todos os habitantes livres do Império, automaticamente, em cidadãos romanos.
        “Cassação”
        A história de Expedito, verdadeira ou não, é moralmente útil e santidade se constrói, principalmente, com elevação moral e não tanto com dados de realidade, mesmo porque a realidade objetiva, e são as próprias ciências da natureza que o afirmam, está sujeita a ilusões e distorções perceptuais e intelectuais; as miragens são fenômenos naturais! Se o contrário é que fosse verdade, então os matemáticos, físicos, químicos, etc., é que seriam as pessoas mais religiosas, e não é necessariamente isso que acontece, embora haja muitos, entre eles, que dão bons testemunhos de fé.
        Entretanto, algum tipo de objetividade é necessário, em um nível mais profundo de posicionamento e enfrentamento público, da mesma forma que havia os “expeditos” e os “impedidos” nas legiões romanas, para tipos diferentes de operações militares, e isso, algum tanto de objetividade, é algo que Expedito não conseguiu demonstrar até agora, a não ser que se venha a descobrir algum documento novo, e por isso, o seu nome foi riscado do Martirológio Romano, e proibida a elevação de sua imagem em igrejas, pelo Papa Pio X, em 1906 (Wikipedia em francês). Em vão, e o clero então se rendeu à força do mito e do desejo das pessoas por santos heroicos, em um mundo onde as pessoas competem para mostrar o quanto são oportunistas.        Na edição do Novo Martirológio Romano, de 2001, não consta o seu nome.
     A propósito, Santo Expedito costuma ser invocado nas causas urgentes ou impossíveis, como Santa rita de Cássia e São Judas Tadeu, como protetor de militares, estudantes, jovens, viajantes, assim como São Cristovão, e comerciantes. Atualmente há uma campanha para torná-lo padroeiro dos nerds e hackers, que estão sempre com a urgência de saltar de um link para outro, nem sempre para fazer uma coisa boa; mas eu creio que, neste caso, o que há é uma causa perdida (pisc!).


BERNADETTE SOUBIROUS (1844-1879)

Prof Eduardo Simões

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O Contexto Familiar

         Marie-Bernade Soubirous (pronuncia subirrú), nasceu na zona rural de Lourdes, no moinho de Boly (foto acima, mostrando, à direita, uma grande pedra redonda, a mó, com a qual se esmagava os grãos de trigo para fazer farinha; um acidente com uma dessas pedras teve sérias consequências para o pai de Bernadete), no seio de uma família de classe média abastada, em um ambiente fortemente matriarcal.
         Seu, pai, François (pronuncia “françuá”) Soubirous era um moleiro de família remediada, que fora atraído ao Boly, pela sua proprietária, a viúva Clara Casterot, na esperança de que ele se interessasse pela sua filha primogênita, a inteligente e trabalhadora Bernade, ou Bernarda, mas ele preferiu os olhos azuis e sonhadores da filha mais nova, Louise, com a qual se casou em janeiro de 1843.
         No ano seguinte, em janeiro, nasce Bernadete (diminutivo de Bernade), que se chamou Marie-Bernade em homenagem à sua madrinha, a repudiada Bernade, que sempre terá muita ascendência sobre ela e a família, tutelando-a, na medida do possível.
         A meninice de Bernadete, porém, não foi tão burguesa como se prenunciava. François era um homem “sossegado”, indiferente ao dia de amanhã, que se contaminava fácil pela placidez da vida familiar, enquanto Louise se esmerava para ser uma boa mãe e dona-de-casa, mas sem nenhum projeto ou pulso para imprimir um pouco mais de ambição e gosto pelo trabalho ao descansado marido.
         Para piorar as coisas, no sentido meramente humano e material, os dois eram muito “mão-aberta”, acudindo a todos os que necessitavam, ou não, sempre procurando mostrar uma abastança que, na prática, não possuíam, facilitando para os aproveitadores, que sempre sobram nessas ocasiões. Impossibilitada de aleitar a filha, por causa de um acidente, Louise a entrega a uma “mãe-de-leite”, Marie Lagüe, que ficará com ela durante dois anos, para grande desassossego de François, que sempre terá uma relação muito próxima com a sua primogênita, e por causa disso trabalhará menos ainda, enquanto a família começava a se arrastar para a ruína financeira, embora as condições de vida e prosperidade no campo, ainda fossem relativamente boas na França.
         O casal, que sempre foi muito religioso e oracional, experimentou grande “tranco”, em 1849, quando ao repicar a mó, François perdeu um olho, por causa de uma lasca da pedra. Nesse mesmo ano, a família, insolvente, foi obrigada a deixar o moinho, em busca de outro mais modesto.
         Em 1855, outro drama se abate sobre os Casterot-Soubirous, uma epidemia de cólera se espalha pelo sul da França, matando 150 mil pessoas, inclusive 38 habitantes de Lourdes. Bernadette também cai de cama, com uma doença severa, mas desconhecida, que os parentes supõem, sem evidências, ser cólera, da qual ela sairá com a saúde definitivamente debilitada, sujeita a contínuas crises de asma.
         Depois de trabalhar ainda em dois moinhos e morar em outros endereços, cada um mais pobre que o outro, em janeiro de 1857, os Casterot-Soubirous são expulsos, por falta de pagamento, da última casa digna do nome, e em estado de completa miséria, mendigos mesmo, vão se instalar num cubículo infecto que os lourdenses chamam de “cachot” (calabouço, em francês).

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         “Le cachot” era uma cela de prisão infecta, situada em uma estreita rua sem saída, a rue des Fossés, que fora abandonada, em 1824, como prisão, por razões sanitárias, e que passou a ser alugada a trabalhadores rurais estrangeiros, por curtos períodos de seis meses, quando era minimamente salubre. Nesse cubículo, de 3,7 por 4,4 m, a família de Bernadette, que chegou a ter até nove membros – ao todo, François e Louise tiveram nove filhos, dos quais apenas quatro vingaram, e nisso também eles se diferenciavam dos seus vizinhos, que, já imbuídos da mentalidade burguesa, diziam que o excesso de filhos desbaratava o patrimônio da família, o que nada tem a ver com planejamento familiar. A família, inclusive no sertão da França, já era vista apenas como uma da empresa, o que, aliado à rejeição do catolicismo tradicional, explica o extravagante decréscimo populacional francês. Nesse cubículo os Casterot-Soubirous viveram durante seis anos, com privacidade zero, principalmente no inverno, quando a neve e os ventos os impediam completamente de sair de casa, por dias! (nas fotos acima vemos uma reconstituição do “le cachot” na época de Bernadette, e a recepção de um visitante ilustre ao local, Bento XVI, que tem, às mãos, o diário com anotações da santa). Imagine-se, agora, o que é viver num lugar desses, num clima como o da França, uma pessoa sujeita a crises de asma frequentes.
         François e Louise passaram a viver de empregos temporários e “bicos”, e sua situação só piorava. As famílias dos cônjuges, por sua vez, procuravam intrigá-los, em especial os parentes de Louise, que viam em François um fracassado, ou, como os americanos dizem, “um perdedor” nato, assim como muito de seus antigos vizinhos e amigos, que os tratavam como irresponsáveis, esquecidos da ajuda e dos mimos que o casal lhes fizeram nos tempos das “vacas gordas”, e que eles próprios, os vizinhos, nesse período, tiraram amplas vantagens dessa “irresponsabilidade”, principalmente da vergonha que François tinha de cobrar a quem lhe devia. Assim caminha a humanidade!
         Em determinadas ocasiões, sem trabalho, François deixava-se ficar deitado na cama, quase o dia todo, para gastar menos energia, e, por conseguinte, sentir menos fome, e precisar comer menos, deixando mais comida para os filhos e esposa, que, por sua vez, aceitava aquela situação com uma resignação impressionante, de sorte que a família se manteve estável e unida até o fim. E que “barra” eles enfrentaram! Um irmão de Bernadette foi surpreendido, certa vez, numa igreja, a comer cera de vela derretida; Bernadette, quando precisava lavar a sua roupa, tinha que pedir uma roupa emprestada a alguém...

         Em que pese os seus defeitos e limitações pessoais, François e Louise, que eram completamente analfabetos, se desincumbiram de seus papeis de pai e mãe de uma maneira admirável, preservando a família mesmo nessas condições, o que torna altamente culpável a forma fácil e irresponsável com que alguns, muito mais endinheirados e cultos, começam e desfazem as suas famílias, nos dias de hoje.


Uma Vidente Muito “Espoleta”

         Embora vivessem em um ambiente de crise constante, sempre à beira da extinção, nem ela nem seus pais jamais se deixaram abalar, tanto que nunca aceitaram contribuições e esmolas dos peregrinos que afluíam a Lourdes, após o “sucesso” das aparições, por mais generosas que fossem.
         No ambiente doméstico havia muita oração e paz de espírito, com tanto o pai quanto a mãe se esforçando ao máximo para manter um clima de respeitosa paz conjugal, apesar de tudo, e do apelo constante à violência, típico da pedagogia da época e da rudeza natural, mas ainda cheia de nobreza e lógica, do mundo campônio.
         Bernadette, apesar de sua saúde frágil e dos constantes ataques de asma, nunca foi de se “encostar”, estando sempre disposta a ajudar e a encarar qualquer tarefa, por mais dura que fosse. Não teve sequer o direito de ser amamentada pela mãe, e desde muito cedo teve que assumir o papel de mãe substituta, para os irmãos, e encarar responsabilidades bem acima do comum para a sua idade, enquanto os pais saíam para fazer algum “bico”.
Uma de suas brincadeiras preferidas, junto com irmãos e primos, era fantasiar estarem todos reunidos degustando uma saborosa refeição – a fantasia como válvula de escape, ante uma ameaça crônica – organizada pela compenetrada Bernadette, a mais velha entre eles. Havia, porém, um primo muito levado que, de vez em quando, por provocação, virava o conteúdo invisível de seu “prato” ou das “panelas”, também invisíveis, no chão, recebendo, pela “arte”, um vigoroso bofetão no rosto da primona, logo seguido de um pedido de desculpas, de nova arte, e de novo bofetão, adiante.
         Sim, não havia nada de delicado, de fino em Bernadette. O seu olhar transparece ao mesmo tempo uma meiguice e uma firme personalidade, um caráter invencível, sem nenhuma moldura que atenuasse o seu aspecto agreste. Uma típica camponesa esquecida, de uma região esquecida da França.
         Certa vez foi trabalhar como atendente em um cabaré – céus, mas é isso mesmo! – de sua madrinha Bernade, que mantinha as aparências de uma pousada “honesta”, exigindo boas maneiras dos frequentadores, e criando o maior “barraco”, quando ficava sabendo de algum falatório. Por conseguinte, ninguém tocava no assunto. Como balconista, porém, Bernadette foi um desastre. Contaminada pela generosidade do pai, sempre insistia que os clientes se servissem mais um pouco, pelo mesmo preço, principalmente quando suas amigas iam lhe visitar, o que se tornou cada vez mais comum. Bernade, já escaldada pelo cunhado, não hesitou: deu-lhe o bilhete azul.
         Criada num ambiente pobre e inculto, só recentemente o burgo de Lourdes fora favorecido com uma escola pública para meninas, devido à lei Falloux, de 1850, Bernadette não só era analfabeta como inculta, e sua inteligência só funcionava bem nas coisas concretas. Sua capacidade para entender conceitos abstratos e reter definições era precária. Sua mãe-de-leite, percebendo a sua dificuldade em captar os ensinamentos do catecismo disse-lhe certa vez: “Você é muito ignorante; nunca vai aprender nada”. Dotada de um profundo senso de realidade, e de uma autoimagem clara, sem fantasias, ela nunca procurou para si mais do que era capaz, mesmo quando as chances se amontoavam aos seus pés, mas também, dotada de um profundo senso de dignidade e nenhum pingo de autocompaixão, ela jamais assumiu o estereótipo da “coitadinha”, encarando todas as dificuldades, com cabeça erguida e serena nobreza.
           Ela quase deixou de receber a primeira comunhão por não ser capaz de memorizar os ensinamentos do catecismo. Empacou fortemente logo com a definição de “Santíssima Trindade”, mas mostrou uma inteligência prática ao organizar de maneira exemplar a enfermaria das Irmãs da Caridade de Nevers, no fim da vida. Uma coisa, de fato, é a cultura pessoal e outra, bem diferente, é a inteligência. Bernadette só aprendeu a ler e escrever quando já era quase adulta. Ela sequer sabia falar o francês, falava apenas o antiquíssimo dialeto regional, o ocitano, uma variação do provençal, que, entre outras coisas, compareceu fortemente na formação da língua portuguesa, mas, além disso, era uma pessoa que tinha muita iniciativa, era bem humorada, com o dom da resposta pronta, de uma lógica desconcertante. Dizem que ela era razoavelmente autoritária, que gostava de se sentir dona da situação, embora não haja notícia de alguém que tenha sido prejudicado ou humilhado por ela, enquanto a recíproca está longe de ser verdadeira.
         Era virtuosa sim, mas não heroica. Enquanto estve pela segunda vez na casa de sua mãe-de-leite, fugindo, a convite, da miséria do “cachot”, ela foi duramente brutalizada por aquela, que, por alguma razão, começou a associar a sua protegida à morte prematura de seus três filhos. Era-lhe oferecida, cada manhã, tipo uma pasta de milho grosseira, mas muito popular, que lhe revirava o estômago cruelmente – no cachot os pais faziam um sacrifício e lhe ofereciam um queijo melhor para seu estômago sensível. Ela fazia bolotas com aquela “gororoba” e as atirava às ovelhas que, nessa época, pastoreava.

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         Numa de suas visitas visita, seu pai (ilustração acima), percebendo o estado de espírito miserável da filha, condoeu-se dela e a levou de volta, para a miséria absoluta do cachot. O pretexto foi a necessidade de tomar aulas de catecismo, preparatórias para a Primeira Comunhão. Bernadette arregaçou as mangas, voltou para casa e ingressou na ala dos indigentes da escola mantida pelas Irmãs da Caridade, em Lourdes. Graças ao seu retorno, porém, ela poderá vivenciar para nós as suas espetaculares visões. 


As Aparições




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Aspecto atual da gruta de Massabielle.

         A primeira se deu no dia 11 de fevereiro de 1858, em uma reentrância de rocha, chamada impropriamente “gruta” de Massabielle, à margem esquerda do rio Gave, um riacho, para os padrões brasileiros, para onde Bernadette, sua irmã Toinete e uma amiga tinham ido para coletar lenha. A irmã e a amiga foram na frente, e enquanto ela tirava as meias, para poder atravessar um braço do rio, sentiu, a princípio uma brisa inesperada – um fenômeno comum em algumas teofanias (Gn 3,8; 1 Rs 19,12) – seguida de um clarão e da visão de um vulto, como que de uma jovem mulher, que lhe apareceu, no nicho mais alto de Massabielle.
                Afinal, o que foi que ela viu? Bernadette nunca afirmou por iniciativa própria, que vira Maria, a mãe do Senhor, e sempre resistiu aos que queriam supor isso, nomeando as aparições com o termo vago e indefinido, de “Aqueró”, que em ocitano quer dizer “aquilo”.
         E como era Aqueró? Segundo ela, seria uma jovem entre 16 e 17 anos, muito bonita, o que provocou uma decepção geral, afinal sempre se pintara a senhora dos céus, Maria, como uma senhora madura, mais compatível com aspecto de uma grande rainha, nos padrões terrenos, e de forma alguma consentiram em representar Maria assim tão jovem, representando-a como uma senhora, para tristeza de Bernadette, que via ou projetava nela seu ideal de juventude e pobreza, as vanguardas da resistência à sociedade que despontava no horizonte.
         Enfim, a Rainha dos Céus não passava de uma jovenzinha, justo no momento em que filósofos e educadores, adaptados ao ideal burguês da disciplina fabril, tendiam a demonizar a adolescência e a juventude, fases em que o ser humano não produz, ou produz pouco, e consome muito, pregando uma pedagogia de punições e chibatadas, para por esses “endiabrados” nos trilhos da boa conduta, principalmente quando entravam na adolescência, e deixavam de ser os anjos de inocência da infância.
         Aqueró sorria com frequência, inclusive quando ela e suas amigas lhe atiraram água benta, tentando afugentá-la, ante a possibilidade de aquela ser uma parição demoníaca, ou quando Bernadette lhe vinha com um pedido despropositado de alguém, quando então se limitava a dizer: “Isso não é necessário”, ou mesmo quando de alguma “escorregada” da vidente. Os seus gestos eram suaves, breves e serenos, e aparentemente falava muito pouco, inclusive rezava o terço com Bernadette de boca fechada – não faria sentido ela rezar para ela mesma, se é que era o quem nós pensamos que seja – embora se saiba que confiou alguns segredos à sua vidente, que nunca os revelou.
         A respeito desses segredos, certa vez lhe perguntaram se ela os contaria ao bispo. Ela respondeu: “Não é necessário que ele os saiba”. “E ao Papa?” Insistiram. “Aí eu vou pensar”, respondeu. Nela a obediência e a submissão à Igreja Católica era visceral; e devesse ainda considerar que o Papa não teria curiosidade sobre esse assunto, se não fosse a isso movido pelo Espírito Santo, ou pela própria Aqueró.
         Dando sinais de que recebera a mais fina educação, Aqueró era toda gentileza. Ao fazer um pedido a Bernadette sempre dizia: “Você pode, por favor, me fazer a bondade de...” Embora, às vezes, fizesse pedidos estranhos, como no dia em que pediu a Bernadette que escavasse o chão próximo à parede do rochedo e bebesse da água, imunda, que dele afluiu, além de esfregar lama no rosto e comer umas ervas que cresciam ali.
         Esse fato, ocorrido logo nas primeiras aparições, com centenas de pessoas presentes, foi muito impactante, exigiu-lhe muita coragem, pois vários dos presentes começaram a murmurar em alta voz que ela enlouquecera e que tudo não passava de um embuste; mas Aqueró pedira-lhe esse sacrifício pelos pecadores. Noutra ocasião, ela também revelou que Aqueró recomendava às pessoas fazerem penitência em favor dos pecadores.
         Aqueró propagandeava a devoção do terço, invariavelmente ela aparecia com um belo terço à mão, e, em geral, rezava um rosário com Bernadette, antes de lhe revelar alguma coisa. Daquele jeito: com a boca fechada, só mexendo com as contas. Vários de seus discretos movimentos eram automaticamente repetidos pela vidente, com se esta e a aparição fossem uma coisa só.
         Várias testemunhas afirmavam que nesses momentos o semblante de Bernadette se transformava. Uns perceberam que a sua pela ficava branca como cera, com se fosse desmaiar; é que a carne resiste ao espírito e sofre com a intensificação do mundo espiritual, de onde se vê o grande engano em que incorrem aqueles que buscam nas práticas religiosas, supostamente espirituais, o conforto para a sua carne ou o sucesso nesse mundo. São cegos guiados por cegos (Mt 15,14). Outros, no entanto, diziam que o seu rosto mudava e adquiria uma beleza estranha, indescritível, mas claramente visível – o primeiro fotógrafo de Bernadette, padre Bernadou, que a fotografou entre 1861 e 1862 (ela é o primeiro santo a ser fotografado), tentando reproduzir o momento da aparição, se exasperou, certa vez, dizendo-lhe: “Não é essa a cara que você fazia quando estava lá [em Massabielle]!” Ao que ela respondeu: “Mas ela [Aqueró] também não está aqui!”


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Bernadette se esforçando, em vão, para reproduzir o
momento ‘mágico’ das aparições, no atelier do padre Bernadou. Nessa época ela estava com 16 anos, a idade aparente de Aqueró. 

 O Calvário de Bernadette

         Em uma das primeiras aparições, Aqueró lhe teria dito “eu não prometo lhe fazer feliz nesta vida, mas na outra”; e a profecia que se realizou desde a primeira aparição, quando, ao chegarem em casa, Toinette, a irmã dela, apesar da promessa de guardar segredo, relatou a visão de Bernadete para a mãe. Ambas levaram uma boa surra de bastão.
Noutra oportunidade, quando ela experimentou um êxtase profundo, e foi necessária a ajuda de terceiros para tirá-la do lugar. Chamado pelas irmãs de Bernadette, o jovem e forte moleiro Antoine teve uma dificuldade imensa de lhe tirar do chão, embora ela só medisse 1,4 m de altura, e pesasse em torno de 30 quilos; Antoine percebeu que o seu peso diminuía, quando os seus olhos eram encobertos. Sua mãe já chegou brandindo o bastão, e teria lhe dado uma surra inesquecível, se vizinhos e amigos não tivessem intercedido.
         Mas o pior estava por vir. As notícias se espalhavam rápido pela pequena vila de Lourdes, e, imediatamente, jovens desocupados e adultos folgazões começaram a fazer trocadilhos jocosos e humilhantes com ela, que diziam em voz alta, com grande estardalhaço, sempre que Bernadette passava.
         Na ala dos indigentes da escola das irmãs de Caridade, que Bernadette frequentava, as freiras acompanharam a crença mais geral de que tudo não passava de um embuste ou de fantasias tolas da cabeça de uma adolescente, e começaram a reprimi-la com rudeza, chamando-a “velhaca”, como era da crença pedagógica da época, procurando afastá-la daquilo – como quem dá umas tapas em alguém durante um ataque de histeria, para tirá-lo daquela condição. Mas Bernadette não estava histérica... Após a segunda aparição, uma professora lhe pegou pelos ombros e a sacudiu vigorosamente dizendo: “Sua criança louca! Louca! Se você voltar à gruta será presa!”
         Mesmo aqueles que acreditavam a faziam sofrer, incomodando-a, e à sua família, com suas expectativas e pedidos absurdos. Tal aconteceu com uma tal Madame Milhet, uma antiga criada que subira na vida casando com o patrão, e agora, que era viúva, se sentia a “dona do pedaço”.
         Por alguma razão essa desmiolada pôs na cabeça que Massabielle era uma porta do purgatório, e que Bernadete estava vendo o espírito de Elisa Latapie, ex-dirigente das Filhas de Maria, falecida recentemente. Essa senhora devia estar sendo influenciada pela última moda de Paris, que eram as demonstrações “espíritas”, feitas por diversos charlatães, e homens como Allan Kardec, no o início dos 1850. Era “fino” crer nessas experiências “espirituais”, participar das sessões de ‘mesas dançantes’.
         Fazendo valer a força da fortuna do falecido, Mme Milhet impõe que a pobre Louise lhe empreste a sua primogênita, para ir morar na sua casa, como sua “protegida”, para ter melhor controle sobre as parições. Pela primeira vez, nos últimos anos, ela soube o que é uma vida de fartura. Esse fato, porém, tocou nos brios, ciúmes, carências e sentimentos de culpa da poderosa madrinha Bernada, que interveio, e trouxe Bernadette de volta para o cachot. Sem nenhuma reclamação ou lástima da parte dela.
         Mesmo depois que as aparições ficaram famosas, e quase ninguém mais duvidava delas, a sua vida e a de sua família foi muito perturbada pela legião de peregrinos que queria conhecê-la pessoalmente, e ao local onde morava, acontecendo do cachot, por vezes, ficar lotado por estranhos, e nem precisava ser muitos, além de centenas de outras pessoas cercando o local pelo lado de fora. A coisa ficou tão séria, que ela foi enviada pelo juiz Pougat, a uma estação próxima, durante quase duas semanas, em maio, para descansar. Embora sob vigilância constante do comissário local, que só relatou coisas boas sobre ela – recusava ser veículo de milagres e não aceitava ajuda financeira.
         As situações mais embaraçosas aconteciam quando os peregrinos se aproximavam, compadecidos por verem a ela e a sua família tão pobres, tão longes da prosperidade burguesa, e lhe ofereciam dinheiro ou presentes. Ela os pegava e atirava-os ao chão ali mesmo. Mais tarde ela nem se deu mais ao trabalho de pegá-los, limitando-se a dizer: “Faça-me o favor de queimá-lo, por mim”. Mesma atitude apresentavam seus pais e irmãos, que só foram resgatados da miséria, quando um padre conseguiu um empego de moleiro para François, em um novo moinho, e ele e sua esposa acabaram seus dias em modesta, mas digna, situação.
         Por vezes nem seus próximos lhe deixavam em paz. Na aparição de 7 de abril, Bernadette, em êxtase, põe as mãos em concha muito próximas da chama de um círio, que fica passando entre seus dedos, os mais próximos veem e se horrorizam, entre eles o médico da cidade, Dozous, um agnóstico, que após examinar suas mãos dela, intactas, apesar de mais de dez minutos entre as chamas, se converte e se torna um de seus mais fervorosos adeptos. Ao chegar em casa esse era o assunto de todos, e uma amiga dela, a sacristã da igreja, pediu-lhe que ela ficasse de mãos postas em oração, como estava na gruta. “Fecha os olhos”. Ela fechou, e a sacristã meteu-lhe uma vela acesa entre os dedos. “Você está me queimando!”, gritou ela. A irmã mais nova de Bernadette, pensando que era uma brincadeira, já foi chegando com a sua vela acessa: “Eu também quero [queimar Bernadette]”. E ficaram testando uma na outra; “Ai!”, “Ai!”...
         Bernadette se afastou logo dali. “Tontas!”

As Autoridades se Manifestam

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Postal de Lourdes em 1860. À direita vemos um pequeno trecho do Gave; ao centro a prisão fortaleza; e à esquerda a cidade, da qual se destaca a torre da igreja.

         Lourdes era uma pequena vila de 4.000 habitantes, em 1858. Numa comunidade desse tamanho, qualquer acontecimento extra, a mudança de rotina de um único cidadão, não passava despercebida, ainda mais quando para ela afluíam milhares de peregrinos, vindos de cidades próximas e regiões distantes – nas últimas aparições já havia mais de 5 mil pessoas presentes, superior a toda população da cidade! As autoridades não podiam ficar de braços cruzados.
         Nessa época havia uma forte afirmação do gênio humano e das ciências naturais, que prometiam explicar tudo, nesse mundo e no outro, inclusive os supostos fenômenos espirituais, tratados na maioria das vezes como perturbações mentais, charlatanismo, etc., além do poder da burguesia e a moral do capital, o que os levava a desprezar e denunciar a pobreza como resultado dos desacertos de mentes preguiçosas, incapazes e ignorantes, quando não de taras organicamente adquiridas. A mulher é um ser inferior, seu cérebro é menor, e a sua intuitividade era vista como herança do passado bárbaro e primitivo, da espécie, e de uma incapacidade estrutural para o pensamento lógico, de onde o seu apego natural pela religião.
         Havia também, essa era a outra face da moeda, uma crença da superioridade do estado laico sobre a Igreja, que fez muitos países da Europa, avançarem sobre as propriedades, além do controle administrativo, e até da cura espiritual, da Igreja, vista como um resíduo medieval, movido por uma ideologia ultrapassada, entre os quais um dos mais ativos era a França. Essa tendência chama-se genericamente “regalismo”. O estado laico, portanto, empurrava a Igreja contra a parede, assenhorando-se de seus bens, depreciando o seu patrimônio espiritual: “um cipoal de mitos e lendas, para mulheres, crianças e doentes mentais” Foi com esse espírito que as autoridades públicas de Lourdes trataram a jovem vidente, que tinha tudo contra ela: era jovem, do sexo feminino, pobre, pequenininha e sem estudos. Mas tiveram uma surpresa!

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         Em primeiro lugar, encontrava-se o sub-prefeito Anselmo Lacade (foto), um político ativo e empreendedor, que tomou várias medidas no intuito de melhorar a cidade. A princípio ele ficou desconfiado e contrário ao que estava acontecendo, mas, “liso” como só os políticos costumam ser, rapidamente percebeu as oportunidades que se abriam, com o afluxo de peregrinos, e tentou se adaptar aos novos tempos, investindo muito na criação de infraestrutura para receber os peregrinos.

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         Noutra linha seguia o delegado Dominique Jacomet (foto), que, ignorando escandalosamente a lei, mandou um soldado trazê-la à delegacia, apesar de desacompanhada de familiar. Jacomet, o “zorro” do Médio-Pirineus, estava tão convencido da farsa e do seu poder de desmascarar embusteiros, que nem se deu ao trabalho de elaborar uma linha de interrogatório consistente, nem em seguir as normas legais previstas pela legislação, afinal ele era “macaco velho”, experiente, conhecedor das manhas do ofício, e estava firmemente convencido de lidaria com uma pilantra ou uma mera garotinha sugestionável, e para deixá-la impressionada compareceu ao interrogatório trajando o chamativo uniforme de polícia, com um espalhafatoso boné vermelho, de onde pendiam borlas douradas.
         Ele bem que tentou, e tentou muito, mas não conseguiu dobrar a serenidade e a consistência das declarações da pequenina camponesa; sequer conseguiu extrair dela a promessa de não mais ir à gruta, logo quando ela acabara de prometer a Aqueró comparecer por mais quinze vezes ao local. Por fim ele perdeu as estribeiras. As pessoas que estavam na sala ao lado o ouviram, em voz alta, dizer, ou sugerir, que Bernadette não passava, ou queria ser uma “pequena prostituta”, de uma “bêbada”, uma “velhaca mentirosa” – talvez por ela já ter trabalhado em um cabaré. A chegada do pai de Bernadette, seguido de uma multidão, veio livrar ao pobre comissário de ser totalmente desmoralizado por uma adolescente, encerrar a carreira com um desatino ou sofrer um ataque cardíaco. Quando chegou em casa e lhe perguntaram o que acontecera, Bernadette se limitou a dizer, entre risos e trejeitos, que “o comissário estava muito nervoso, e quando ele falava as borlas do seu boné faziam ‘tin’, ‘tin’”. Como os adolescentes são cruéis!
         Não devemos, no entanto, ser muito severos com o comissário, pois ele sempre cumpriu com zelo o seu dever e ajudou a muita gente em Lourdes, durante a epidemia de cólera. Nas últimas aparições, inclusive, ele e os seus homens estavam lá, protegendo a Bernadette da inconveniência dos peregrinos, Jacomet era apenas demasiado “comum”, bem diferente da autoridade que lho seguiu, pois no dia 25 de fevereiro ela foi convocada para se apresentar ao procurador imperial o Sr. Dutour. Ela foi seguida da mãe e de um primo, mas este foi proibido de entrar, sob a promessa de que nada aconteceria às duas.

        
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         Vital Dutour (foto), era um homem excessivamente sério, estritamente burocrático e afetivamente enrustido, que escondia por trás normas legais e dos ritos burocráticos um profundo sentimento de inferioridade, uma infelicidade familiar, que ele compensava com o olhar “neutro” e superior com que mirava as pessoas. Absorvera ao longo de sua formação acadêmica toda a ideologia do iluminismo e do liberalismo burguês, cevando-se de preconceitos contra a igreja, os pobres (talvez ele até viesse de uma família pobre) e as coisas da religião, em geral. Estava decidido a acabar com aquela história, mesmo que fosse necessário apelar para um ardil.
         Como Jacomet ele também começa fingindo estar interessado na história da menina, para em seguida tentar confundi-la, adulterando as suas palavras e o depoimento dado ao comissário, sempre corrigido, no ato, pelo espírito cristalino e ágil de Bernadette, e assim como o comissário ele tenta induzi-la manhosamente a não ir mais a Massabielle. Em vão. Apela para a mãe, sem sucesso. Por fim, abusando a boa fé e da ignorância das duas, manda alguém ir chamar o comissário Jacomet para levá-las presas imediatamente. Bernadette não cede. Nesse momento Louise começa a passar mal, e há um corre-corre, logo depois o mensageiro chega dizendo que Jacomet estava “ocupado”. A situação fora tão estressante, que quando os funcionários entraram na sala para acudir a mãe, Bernadette estava sentada no chão. Alguém lhe ofereceu uma cadeira, mas ela recusou com sarcasmo: “Obrigada, mas eu não quero sujá-la”. Paciência de santo não é infinita.
         Posteriormente, Dutour destruiu as anotações feitas no interrogatório, e ao invés de relatar o que ocorrera para seus superiores, limitou-se a atacar genericamente a família de Bernadette, chamando atenção para as suas poucas letras, repercutindo, inclusive, fofocas malevolentes que atribuíam à mãe dela, de um apego exagerado ao vinho. Sobre esse episódio, ela comentou: “Quem escreve cruz em papel, é gente que não sabe ler e escrever”, essa não vivia dormindo, “o senhor procurador não parou de fazer cruzes no papel”. Adolescente, pobre, sob uma pressão imensa, ela nem assim perdia a visão sobre o que se passava a seu redor, e atinava corretamente o que estava acontecendo, o embuste de tudo aquilo e o descontrole emocional de Dutour, um poço de erudição jurídica e estima social, diante de uma “desprezível” camponesa adolescente.
         Dutour não se deu por vencido, mas a sua situação também não é confortável, pois muitas pessoas de alto nível social e político, da cidade, começam a se passar para o lado dos Soubirous. O próprio Senhor Pougat, juiz, e mais alta autoridade pública de Lourdes, vai à casa da família Soubirous para orientar a François, em virtude das ameaças veladas que Dutour, amiúde, lhe fazia, aproveitando-se inclusive de que, no passado, François fora acusado de roubar dois sacos de trigo – uma acusação gratuita, justificada apenas pela pobreza extrema em que vivia com sua família. ninguém mais do que ele, na lógica do dono do moinho, teria motivos para perpetrar o roubo, logo... François ficou oito dias na prisão, e foi solto pelo mesmo motivo que o fizeram encarcerar: a excessiva pobreza de sua família.
         Em 18 de março ela foi novamente convocada para um interrogatório, desta vez na presença dele, Dutour, do comissário Jacomet, o prefeito e o secretário do prefeito, e, segundo as anotações do comissário, Bernadette tranquiliza-os a cerca dos segredos que Aqueró lhe contou, e que o vulgo aumentava sem cessar, já especulando sobre o fim do mundo, como sempre acontece nesses casos: “Garanto que não há nada de terrível neles, senão olhem para mim!”, disse ela, da mesma forma que recusou ter efetuado qualquer cura, inclusive de uma menina cega, que quis lhe tocar. Jacomet anotou no seu diário que naquele dia ela parecia hesitante: “Não estou bem certa se ela falou de uma capela ou de uma procissão...” Por fim foi-lhe dada uma ordem para que não retornasse à gruta, ao que ela respondeu vagamente: “Eu não sei se retornarei mais à gruta”.
         No relatório final Dutour procurou ser conciliador, reconhecendo que de fato Bernadette viu alguma coisa, que agia de boa fé, mas que nem ela nem a sua família estavam tirando proveito da situação, e que se comprometera a não mais ir à gruta. Vitória deles? Nem tanto, pois o Evangelho prega a submissão às autoridades constituídas (Mt 22,21; Pd 8,5; Rm 13,1), além de que a verdadeira adoração prescinde da presença e de um lugar específico (Lc 7,7; Jo 4,23). Ela estava amadurecendo na sua fé, e já não precisava tanto, como no passado, enfrentar aos outros abertamente, afinal só se beneficia da salvação aquele que a busca, seja aonde for. Cada um deve ser o primeiro responsável por sua própria salvação, sem falar que não adianta falar da fé, a quem não quer crer (Mt 7,6; Eclo 22,9-13).
         De fato, a última aparição ocorreu com Bernadette distante de Massabielle, ajoelhada na outra margem do Gave, inclusive quando já havia um tapume erguido pelas autoridades diante de Massabielle. Ela relatou que nesse encontro foi transportada em espírito até a gruta, e lá teve um encontro silencioso, face a face com a Imaculada Conceição, que não lhe disse nada, mas só Deus sabe dos frutos espirituais que ela daí colheu.

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         Depois da famosa aparição do dia 25 de março, conta-se que, aos poucos, uma espécie de fervor místico descontrolado, de fundo histérico, tomou conta da cidade, e impregnou a atmosfera, a ponto de quase poder ser tocado. Mulheres e crianças começaram a narrar aparições por tudo que é lado. A coisa parecia estar saindo de controle. Nessa época Bernadete descansava em uma vilinha próxima. Essa epidemia de visionários, que se propagou de abril a julho de 1858, acabou atraindo a ira de uma autoridade mais poderosa: o prefeito de Tarbes, Oscar Massi (foto), que tinha jurisdição sobre Lourdes, a pretexto de defender a “verdadeira religião” contra o “fanatismo” e o “charlatanismo”, ordenou que o acesso à gruta fosse bloqueado por um tapume. A situação ficou tensa, e por três vezes a população o destruiu na marra, só sossegando, quando percebeu que Bernadette não aprovava aquelas ações, que ela não seria uma Joana D’Arc sem causa. Se aquilo aconteceu, é porque Deus o permitira.
         A própria Bernadette foi vítima da fúria iluminista de Massy, sendo obrigada a apresentar-se diante de uma junta de médicos, com a clara missão de encontrar e denunciar qualquer indício de distúrbio mental na vidente. Foi no dia 27 de março. De fato, a saúde física dela era um desastre, mas a sua mente era tão robusta, tão lúcida, que os médicos, constrangidos, emitiram um laudo que não dizia nem uma coisa nem outra, uma vez que não podiam nem alardear o vigor mental de Bernadette nem atender ao prefeito, sem se desmoralizarem profissionalmente.
         A situação começou a mudar quando uma dama da mais alta nobreza da França foi detida por pegar água da fonte, o que era proibido e acarretava multa. A condessa Caroline Felicité, viúva de um famoso almirante, e dama de companhia da imperatriz Maria Eugenia, esposa de Napoleão III, Imperador da França, fora a Massabielle pegar um pouco da água da gruta, que já tinha fama de milagrosa, para ministra-la ao filho do casal imperial, que passava por problemas de saúde na ocasião. A criança, de fato, melhorou, mas nunca se chegou a uma conclusão segura da sua moléstia e se a água realmente fez diferença, embora para a imperatriz isso fosse “líquido” e certo. E começou a pressionar  marido.

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         A situação de Napoleão III (acima), entretanto, não era tão simples. Homem medíocre e sem muito tino de governo, fizera-e cercar por áulicos conservadores e corruptos que minavam a cada dia a credibilidade de seu reinado, e que, por isso, precisava muito da boa vontade dos liberais franceses, regalistas e anticlericais, para continuar no poder. Mas ele também precisava agradar ao outro lado da balança, os partidos católicos, razoavelmente fortes no país. Ele agradou aos liberais, abandonando o Papa, na Itália, à sua sorte, e agradou aos católicos, internamente, liberando a gruta, em 5 de outubro.
         Napoleão III capitaliza para si a gratidão do eleitorado católico do Médio-Pirineus, enquanto o prefeito Oscar Massy, inclusive por pressão da imperatriz, é transferido para Grenoble, onde morrerá, em 1862. Para lá irá também o comissário Jacomet, onde fará um bom trabalho, e deixará um diário muito detalhado sobre os acontecimentos de Lourdes.


A Posição do Clero

         Em três palavras: cautela, cautela, cautela.
         Isso se devia principalmente aos acontecimentos estranhos ligados à controvertida aparição de Maria, em La Salette, em setembro de 1846, que quase destruiu a vida dos videntes Melanie Salvat e Maximin Giraud, e deu munição a grupos anticatólicos, sem falar que a vida dessa gente não é fácil, pois a graça vem sempre acompanhada de uma cruz proporcional, que não é para qualquer um – quem busca por milagres espetaculares e aparições neste mundo, não sabe no que está se metendo. Além do mais, a Igreja, guardiã da mensagem que leva a essas aparições, é de certa forma responsável pelo bem e pelo mal que advier aos videntes, quase sempre muito jovens.
         As Irmãs da Caridade, como vimos, tentaram demover Bernadette das visões, enquanto o padre Peyramale, não queria sequer ouvir falar naquilo. Ele não daria um passo sequer, antes de ter certeza do que estava acontecendo, até saber da natureza daquelas aparições: fantasia, embuste, doença mental? Agindo assim, mesmo sabendo da grande piedade dela e da família Soubirous, os padres preservavam a ela e aos seus dos dissabores de ser uma “superstar” precoce – hoje, as pessoas buscam e veneram essa forma de suicídio da personalidade.

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         Dominique Peyramale (foto) era o cura-deão de Lourdes, o vigário-geral da cidade, famoso pela sua generosidade e dedicação pelos mais pobres, e pelo seu temperamento rude e franco. Ele ia direto ao assunto, sem meias palavras. Ele chegara a Loudes, em janeiro de 1855, contrariado, pois fizera planos para uma paróquia maior. Hum, hum! Quando começou o frenesi por causa da gruta, ele imediatamene procurou o seu bispo, Bertrand-Severe Laurence, em Tarbes, que o recomendou ficar longe da gruta; tanto ele como os seus párocos.
         Em 2 de março de 1858 ocorre o encontro inevitável. Na última aparição, Aqueró havia lhe dito: “Diga aos padres para que venham até aqui, em procissão”. Bernadette, com medo de Peyramale, falou sobre isso com o padre Pomian, mais bonzinho, mas ele remeteu-a ao deão. O encontro foi tenso.
         Ela a recebeu com um monte de perguntas claramente hostis, jogando nelas todas as suas suspeitas sobre a integridade do caráter de Bernadette, uma pessoa que era muito jovem, muito pobre, muito ignorante, que trabalhara em um cabaré, etc. Quem lhe daria crédito? Mas ela, nervosa, responde a tudo com relativa serenidade e firmeza, até que se chegou a um impasse completo: para quem seria dirigida a procissão, afinal Aqueró ainda não revelara o seu nome. Fulo da vida, ele perde a paciência de vez, e passa a destratar, em voz alta, as duas tias de Bernadette que a acompanhavam, e as enxota da casa paroquial.
         No caminho ela se recordará do segundo pedido de Aqueró: a construção de uma capela, mas só encontrará uma amiga com coragem suficiente de encarar o deão, uma segunda vez, ao lado dela. O encontro foi à noite, e havia outros padres com Peyramale, que a recebeu com ares de enfado. Ela estava tão nervosa que, após falar do pedido, acrescentou: “pode ser uma capela pequeninha mesmo”. Pela primeira e única vez ele acrescentava algo às palavras de Aqueró, de tão nervosa, pois aprendera que ira de padre era sagrada, e ainda teve que se submeter a uma sabatina dos padres curiosos sobre o que acontecia em Massabielle.
         Se os padres estavam curiosos, porque não foram lá conferir? Naquele dia, por sinal, um, desafiando as ordens do Bispo, fora à gruta, assistiu a tudo bem de perto, e ficou impressionado. Voltando ao seminário de Saint-Pé, próximo à Lourdes, e, talvez até com peso na consciência, a padre Antoine Dezirat, resolveu contar o que vira a um de seus professores, o conceituado padre Sempé. Ao ouvir início do relato, o padre Sempé desata numa espalhafatosa gargalhada, como a dizer: “como você foi atrás de uma bobagem dessas?”, e encerrou o assunto, deixando o padre Antoine com cara de bobo, sem saber que dez anos depois, ele, Sempé, seria o primeiro superior do santuário das aparições.
         É curiosa essa resistência de Aqueró em revelar o seu nome, mas se pensarmos bem, se já no início ela tivesse dito que era a Virgem Maria, só Deus sabe do sofrimento que teriam passado Bernadette e sua família, despreparados para tal honraria. Porém, em 25 de março, algo aconteceu. Bernadadette, após uma hora em êxtase, levanta-se afobada para ir à casa paroquial.
Acontece que, naquele dia, Bernadette estava decidida a só sair dali depois que soubesse o nome de Aqueró, e como não dominasse bem a sua língua ela disse: “a senhora pode ter a ‘vontade’ de me dizer seu nome?” É que a palavra “vontade”, em ocitano, é semelhante a “bontade”, só que é uma palavra maior e mais difícil, e Bernadette queria ser solene à sua pergunta. Segundo ela, Aqueró abriu um imenso sorriso ao ouvir aquilo, e mais ainda quando ela repetiu a pergunta pela segunda vez, de forma errada. Parecia até que Aqueró se continha para não gargalhar. Na terceira vez, como na confissão de Pedro (Jo 21), Aqueró mudou a expressão, deixou os braços, caídos, se abrirem para os lados, e depois ergueu as mãos até o peito, em postura de oração, olhou para cima e disse em língua ocitana “Que soy era Immaculada Concepciou”. Bernadette seguiu repetindo, aquilo que ela entendeu dessa frase, até chegar à casa paroquial.
         Mal viu o padre já foi dizendo: “Immaculada ‘Counchetsiou’”. “Como?” Diz Peyramale. “O nome da aparição:; Immaculada ‘Conhetsiou’”. Ele arregalou os olhos e ficou pálido, pois percebia, inclusive pela pronúncia errada, que ela não inventava aquilo. “Alguém, no catecismo, já lhe falou sobre isso?” “Não”. Ele conferiu mais tarde. Aquilo era atordoante; empalideceu e seu coração disparara. O dogma da Imaculada Conceição fora definido pelo Papa Pio IX, quatro anos antes. Muita gente entre os católicos de regiões remotas, e até padres em áreas de missão, talvez não o conhecessem, em virtude da precariedade das comunicações na época. Peyramale o conhecia. Nervoso, ele pediu que Bernadette fosse para casa e não falasse daquilo com ninguém. Ela retirou-se cabisbaixa e decepcionada, afinal aquilo não lhe fazia sentido, e ela continuava sem saber quem era a misteriosa jovem.
         Peyramale, decerto, se controlou, mas só Deus sabe das lágrimas que derramou nos seus aposentos, posteriormente, pois o clero, mais do que ninguém, sentia a hostilidade crescente do mundo moderno, industrial, burguês, contra a Igreja Católica, na pessoa tanto do Papa como nos padres, e como, nos últimas décadas, desde a sangrenta Revolução Francesa, o catolicismo perdia espaço e prestígio, encurralado em toda a Europa. E agora ali, naquele “fim de mundo” esquecido por todos, pela boca e os olhos da mais miserável de suas paroquianas, um poderoso sinal dos céus vinha em socorro da Igreja, levantar a fé dos que desfaleciam ou se acomodavam; talvez ele próprio. Ele, que tanta questão fizera de ir para uma paróquia maior, graças ao fato de estar ali, num dos mais insignificantes vilarejos do país, tornara-se testemunha e co-partícipe de um acontecimento espetacular, pelo qual milhões aspiram e poucos têm a graça de presenciar, algo que pode ter repercussão na Igreja Universal. Toda a sua vida, decerto, não valia aquele momento. Como os caminhos de Deus são surpreendentes! A partir daí Peyramale se tornará um adepto e fervoroso defensor incondicional dos interesses de Bernadette.

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Em 17 de julho, ela tem contato pela primeira vez com um bispo: Charles Thomas-Thibault, bispo de Montpellier, que fala ocitano, e se toma de simpatias por ela. Ele tenta lhe dar um rosário com incrustações em ouro, que ela recusa, da forma mais gentil possível. Em seguida veio Paul-Armand Cardon de Garsinies, oriundo da alta nobreza, bispo de Soissons, que também se encanta por ela, e, como Thomas-Thibault, vai até o bispo de Tarbes, Bertrand-Severe Laurence (acima), pedir-lhe que faça alguma coisa por Bernadette. Em seguida os dois se dirigem ao arcebispo de Auch, Louis-Antoine de Salinis, que estava de descanso numa cidade próxima, junto com o jornalista católico mais famoso da França,  Louis Veuillot, que quer também quis conhecer Bernaette, e, após o encontro, relata, na primeira página do seu jornal, L’Univers (O Universo), a história dela, deixando-a internacionalmente conhecida – hoje até os anglicanos ingleses admiram e cultuam, à sua maneira, a pessoa de Bernadette.
Sob o patrocínio do bispo de Tarbes, Bertrand-Severe, é formada uma comissão de padres e estudiosos que submetem Bernadette a mais um interrogatório, para poder dar o veredito final da Igreja sobre as aparições. Mais uma vez ela se sai com brilhantismo. Indagada do absurdo de a aparição lhe pedir para comer ervas silvestres, como os animais, ela respondeu: “Nós não comemos salada!” Os franceses comem, e sempre apreciaram muito, saladas. A comissão, formada em 28 de julho de 1858, dá o seu parecer final, em 28 de janeiro de 1860, quando o bispo assume que “A Imaculada Maria, Mãe de Deus, realmente apareceu a Bernadette Soubirous, em 11 de fevereiro de 1858 e nos dias seguintes, por 18 vezes, na gruta de Massabielle...” Reconhecimento oficial, enfim...
Abro um parentese para alertar aos incautos, que por acaso assistam às representações cinematográficas, ou sob outra forma, do que aconteceu em Lourdes. A mais famosa recriação desses fatos foi o filme A canção de Bernadette (The Song of Bernadette), com Jennifer Jones, em 1943, financiado com capital judeu-protestante, e que causou muito impacto, mas que exibiu uma cena tão falsa como infame, mostrando Bernadette, já no fim da vida, doente, ela morreu, de fato, em 1879, entrando numa maca!!!, para prestar esclarecimentos à comissão, que, na realidade, já deixara de existir há 19 anos, composta por vários padres e religiosos, inclusive dominicanos, tão associados à inquisição, quando, na verdade, foram apenas quatro ou cinco padres seculares a interrogá-la, incluindo o bispo, e que a crivam de perguntas e dúvidas maliciosas, como que a torturá-la. Um dos momentos mais infames e mentirosos da cinematografia mundial.                                                                                                                       A Vocação de Bernadette

         Alguns estudiosos questionam a vocação de Bernadette, pois ela, anteriormente, nunca demonstrara qualquer interesse pela vida religiosa, embora, até por educação familiar, fosse muito piedosa. Ela também nunca mostrou interesse, ao que se sabe até hoje, por algum rapaz – no filme A canção de Bernadette, o diretor fantasiou uma atração entre ela e um jovem moleiro, Antoine, que, na verdade, era 15 anos mais velho do que ela e casado. Quando, ainda adolescente, falava em casar e em ter filhos era sempre de maneira muito genérica, o destino esperado por todas as garotas, com ou sem vocação para o matrimônio.
         Em setembro de 1858, a família de Bernadette sai do cachot para um aposento maior, e no início de 1859, afiançado pelo padre Peyramale, François volta a gerir um moinho, e a condição financeira da família começa melhora, enquanto a situação geral de Bernadette marcha para o colapso: começa a surgir um culto ao redor de sua pessoa, com gente lhe importunando por uma mecha d cabelos, para que escute histórias constrangedoras, etc. O fluxo de peregrinos atinge, ao final do ano de 1858, 30 mil pessoas! Sob pressão popular contínua, Bernadette corre um grande perigo! Seu estresse é enorme!
         É nesse momento que, para preservá-la do assedio dos peregrinos e terminar a sua formação escolar, e, quiçá, profissional, o prefeito cogitou-lhe que se tornasse costureira, aparece a ideia, dos padres e das autoridades locais, de dela passar a morar no hospício das das Irmãs de Caridade, onde se cuidava da saúde de pobres e indigentes, o que só acontecerá em junho de 1860, devido a resistência dela e dos familiares em se separar. Afinal ela vai, sujeitando-se a mais uma grande perda: deixara de ser a “grande irmã”, esteio reconhecido e valorizado de seus pais e irmãos, para ser apenas uma “auxiliar de serviços gerais” num prédio enorme. Era a perda de sua única identidade; mas ali ela fica mais protegida do afluxo contínuo dos peregrinos, que ela só recebe se quiser, além de ser livre para visitar a sua família, sempre acompanhada por uma irmã de caridade.
É sabido a resistência que as irmãs de caridade opuseram às visões, mas não há indícios que Bernadette tenha sido alvo de qualquer perseguição ou preconceito em particular. De uma maneira geral, ninguém imagina o quanto a vida numa instituição religiosa é dura, para homens e mulheres. É como um serviço militar. Ademais que nem no hospício ela terá pleno sossego; certa vez um homem vai importuná-la dentro da cozinha, ajoelhando-se, a pedir-lhe que ela o abençoe. Muitos pediam-lhe autógrafo, que ela assinava: “reze por Bernadette Soubirous”, no postal de um fotógrafo, que fez uma montagem, com o seu rosto dentro de uma flor, ela assinou: “que absurdo!” Ela não gostava de frescuras. Quando lhe vinham com dinheiro ela dizia: “ali há um cofre [de oferendas]”. A tentação do deslumbramento que lhe batia à porta, justo quando sua antigas referências desmoronavam ao seu redor.   
Pessoas que não entendem isso, nem querem refletir sobre o contexto de uma desse tipo de fama, em um ambiente como o do século XIX, com milhões de católicos apreensivos, vendo religiosos, padres e bispos de sua religião, ofendidos, presos e até mortos, onde antes compunham uma elite, o 1º Estado, a Igreja Católica só perdendo espaço e bens, sem falar de alguma possível má fé, defendem que Bernadette foi propositalmente internada no hospício, para ser afastada de Massabielle, para que a burocracia de igreja, os “ortodoxos”, tomassem a frente da administração do santuário e a condução do sentido das aparições. A respeito disso porém, há o acachapante desmentido na obra do historiador e teólogo francês René Laurentin, que fez um estudo exaustivo sobre as aparições coletando toda sorte de documentos, muitos inéditos, compondo uma obra de sete volumes sobre as Aparições, Lourdes: documents autentiques,(Lourdes, Documentos autênticos) entre 1957 e 1966. A melhor obra sobre o assunto. Entretanto é verdade que ela ficou no vazio, pois desde a mais tenra infância fora treinada apenas para cuidar de seus irmãos mais novos, dos quais estava apartada, e nunca fora estimulada à escola, à cultura,ou a ter qualquer expectativa sobre o seu futuro.
         No hospício ela dá continuidade aos seus estudos, deixando nos seus colegas a imagem de uma colega agradável, que fugia de conversas fúteis, mas que ri fácil, fala alto, e que gosta de brincar com crianças mais jovens, decerto reproduzindo o ambiente doméstico. Evolui precariamente no estudo.
         Gradualmente se forma em sua mente a ideia de entrar para uma congregação religiosa, mas sem nunca se afastar de seu incrível senso de realidade e desapego às fantasias inúteis. Certa vez visitou um carmelo, fascinada que estava pelas possibilidades de uma vida contemplativa, onde foi muito bem recebida – desde quando as aparições começaram a ficar conhecidas, várias ordens religiosas a procuraram, com o intuito de tê-la nos seus quadros. Mas ela percebeu que a duríssima rotina do carmelo estava muito acima de suas forças naturais, e, embora tenha recebido a promessa de uma mitigação exclusiva da regra, ela recusou-se, alegando que não iria entrar numa congregação para viver a sua regra pela metade!  
         As Irmãs de Caridade aos poucos se rendem, embora a Madre Superiora do hospício mostre resistências à sua vocação. Enquanto isso ela vai seguindo a rotina típica da instituição, sem se destacar em absolutamente nada, exceto pelo imenso  carinho que dedica aos doentes mais pobres.
         Em setembro de 1863 a sua vocação recebe um impulso. Theodre-augustin Forcade (acima), bispo de Nevers, e orientador da Congregação das Irmãs da Caridade, vai visitar o hospício em Lourdes, e Bernadette, por acaso, é a sineira. Quando o bispo chega ela bate o sino com tanto entusiasmo que o contagia, e este lhe diz “pro, pro”, “mais, mais”, em ocitano. Ela é no ato conquistada pelo bispo que fala a sua língua, e a recíproca verdadeira. Certa vez, numa conversa com Forcade, ele indagou-lhe se a sua vocação não lhe havia sido revelada durante as aparições, ao que ela respondeu: “Ah! Monsenhor...” Como se quisesse dizer: “não me leve a revelar os segredos que não devo contar!” Mais sintonia impossível.

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         Nesse ano, o fotografo Billard-Perrin, consegue autorização para uma nova sequência de fotos de Bernadette, das quais eu escolhi a foto acima, onde aparece toda a espiritualidade penitencial, pesada, do século XIX, típica de uma Igreja que via o mundo naufragando, com perigo de, ao ir para o fundo, arrastar aqueles que ainda temiam a Deus. Tão jovem, e já com uma cruz tão pesada!
        
Noutra ocasião o bispo, já cogitando com ela sobre sua entrada para as irmãs da Caridade de Nevers, perguntou-lhe o que ela sabia fazer. Ela respondeu: “nada, eu não sou boa para nada”. O bispo rebateu dizendo que viu ser muito boa descascando vegetais, ela riu, mas ele a tranquilizou dizendo que, na congregação, se encontraria algo para ela fazer.
Em maio de 1866, foi inaugurada a cripta do santuário das aparições, e a multidão estava tão excitada que Bernadette precisou ser amparada por um cordão de isolamento de religiosas e policiais, para evitar que a multidão a despedaçasse ali mesmo, no afã de obter uma relíquia. Em julho de 1866 ela parte para sempre de Lourdes, para iniciar seu noviciado em Nevers, não sem antes uma última surpresa, um jovem Médico, Raoul Tricquiville a propôs em casamento, por meio de um amigo comum, que levou o recado ao bispo, que nem se deu ao trabalho de considerar semelhante disparate.
O período de noviciado, e os anos seguintes, como Irmã da Caridade, não têm nada de diferente, com que a possamos destacar da imensa maioria de irmãs e freiras espalhadas pelo mundo, era uma vocação absolutamente comum, em nada diferente das outras, exceto pelas situações inesperadas, por vezes cômicas, que a sua franqueza e rusticidade produzem. Diz-se que no dia de sua profissão de votos simples, quando ela de fato iria se tornar freira, em 1867, Dom Forcade chamou seu nome, que fora mudado para Maria Bernada. Nesse momento se dava uma atribuição à freira, de acordo com a suas habilidades: horta, cozinha, limpeza, etc.. A madre superiora curvou-se para o bispo e disse em voz baixa;
- Esta não é boa em nada.
Então o bispo diz em voz alta:
- Irmã Maria Bernada, em qualquer lugar...
E depois acrescenta.
- Minha filha, você não é boa em nada?
- Isso mesmo.
- Mas, então, o que vamos fazer com você?
- Eu já havia bem dito isso para o senhor, em Lourdes, quando o senhor me quis para a comunidade.
Tudo isso no meio de uma cerimônia toda solene.
A Madre superiora propõe que ela seja deslocada para a enfermaria, o bispo concorda e tentando dar algum ar de seriedade ao resto da solenidade, já que todos se entreolhavam embasbacados, ele diz com ar afetado; “eu vos dou o oficio da oração!” (tradução livre da Wikipedia em francês)
Nos dias e anos seguintes Bernadette foi submetida às mais duras formas de trabalho, principalmente os mais humildes, como é praxe na formação de religiosas, para saber qual era a sua tempera, se ela se comportaria como Melanioe Calvat, que influenciada pelo sucesso das visões de La Salette, entrou cheia de exigências em um convento, indispondo-se com as outras irmãs, abandonando a casa pouco tempo depois.
Longe de perseguirem Bernadette, como alguns acusam, a Irmã Superiora e o bispo Forcade, submetendo-a a treinamento tão duro, apesar de sua saúde frágil, queriam, na verdade, protegê-la do sucesso e do excesso de amor por si mesma, inclusive do amor e admiração que, pelo menos ele, tinha por ela. Dom Forcade era tão seu fã, que, certa vez, ao receber o arcebispo de Reims, uma das mais importantes cidades da França, Dom Jean-François Landriot, um cético convicto das aparições, a conversa, por acaso, acabou em Lourdes e Bernadette. Dom Landriot, não esperou e foi logo disparando a queima roupa:
- Eu não acredito na sua Bernadette.
- Tudo bem, diz Dom Forcade, a crença em Bernadette não é artigo de fé, mas o senhor já a viu?
- Não, nem tenho nenhuma intenção de vê-la.
- Mas quem sabe se depois de a conhecer o senhor não muda ideia?
- Não há esse perigo!
Pois bem, Dom Forcade insistiu e conseguiu um encontro de Dom Landriot com Bernadette. Ele a sabatinou com rigor, e até alguma impertinência, como um professor ansioso por desmascarar um aluno metido a “esperto”. Ela respondeu-lhe sempre com poucas palavras, lacônica, mas dizendo exatamente o que ele queria saber, de sorte a não deixar dúvidas. Por fim, cansado, despediu-se dela. Dom Forcade perguntou-lhe:
- E então?
- Bem que você me disse; agora eu creio nela. Eu creio porque fui derrotado. E eu não tenho como explicar, exceto por uma assistência sobrenatural, como uma pastorinha simples e ignorante dos Pirineus, me deixou tão fácil e completamente batido” (traduzido da Wikipedia em francês)
Bernadette não deixou nada escrito, mas seus contemporâneos deixaram vários testemunhos que foram compilados, principalmente por René Laurentin. E que nos dão um retrato muito saboroso de sua incrível personalidade.
A irmã Emille Marcillac conta que ela obedecia escrupulosamente os horários de silêncio, mas que era alegre e falastrona durante o recreio. Certa vez, vendo uma irmã que só andava de olhos fechados, numa piedade excessivamente afetada e sofredora, muito valorizada naquela época, ela disse:
- você vê a irmã ..., se não tivesse uma companheira que ao lado, sofreria um acidente. Por que fechar os olhos quando é preciso mantê-los bem abertos.
De 1870 a 1871, a França se envolveu numa desastrosa guerra com a Alemanha, na qual foi fragorosamente derrotada. Um nobre, visitando Bernadette, perguntou-lhe se ela não temia a proximidade dos alemães, majoritariamente protestantes, e ansiosos por dar nos franceses o troco por tantas guerras e destruições que os franceses havia feito, antes, em territórios alemães, ao que ela respondeu;
- Eu só temo os maus católicos
Se os católicos pensassem mais nisso, e, ao invés de colocar a culpa nos outros pelos recuos da igreja, começassem a reparar mais seus próprios erros, eles, com certeza, “virariam o jogo”, mas não é nada fácil chegar sinceramente a esse discernimento.
 De outra feita uma irmã adoentada, pedia, durante suas crises, que Deus lhe mandasse mais dor ainda, para ela sofrê-la pela conversão dos pecadores. Bernadette, comentando sobre isso, disse: “Como ela é corajosa, eu me contento com aquelas [dores] que Deus manda”. Não sei se alguma parte da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino alcança essa profundidade.
Certa vez uma irmã pegou um morcego que caíra de uma árvore, e outra exclamou horrorizada:
- Como é que você tem coragem de pegar um animal que é a imagem do diabo?
Ela ficou séria e rebateu:
- Saiba, irmã, nenhum animal é a imagem do diabo; só a ofensa a Deus pode ter essa imagem.
Por falar em doenças, estas nunca a abandonaram, e tornaram a sua vida uma luta pela sobrevivência constante. Por três vezes ela recebeu a extrema-unção, hoje unção dos enfermos, que, naquela época, só era dada a quem estava muito mal. Certa vez, doente de cama e cercada por várias noviças, uma lhe perguntou se não sentira medo nas vezes em que recebera extrema-unção.
- Medo de quê? perguntou ela.
- Eu teria medo de morrer, se visse meu último momento se aproximando.
Ela respondeu
- Nunca sabemos quando é esse momento. E, quando chega, Deus nos dá força para enfrentá-lo.
Outra coisa que chamava a atenção, era a sua forma de fazer o sinal da cruz, que, segundo seus contemporâneos, acontecia de um jeito especial, com uma solenidade e uma delicadeza ímpar, e ninguém conseguia imitar. De fato, durante as aparições ela fora vista fazendo, repetidas vezes, o sinal da cruz, como se a Virgem a estivesse ensinando, mais tarde ela dirá que fazer bem o sinal da cruz é muito importante, algo que os atuais católicos precisam tratar com mais seriedade
Embora muito discreta e sempre evitando as luzes da fama, Bernadette acabou sendo arrastada, de boa fé, para o centro de uma disputa muito mesquinha, na qual ela não tinha o menor interesse. Um escritor católico famoso na França, Henri Lasserre, resolveu escrever um livro minucioso sobre as aparições, baseado principalmente em documentos oficiais, chamado Nossa Senhora de Lourdes, cuja primeira edição saiu em 1869. Ora, em pouco tempo o livro ficou famoso, conheceu mais de 200 edições e vendeu mais de um milhão de exemplares; tornando-se o grande best-seller religioso do século XIX.
Deslumbrado com o sucesso e o dinheiro, seu autor tomou-se de de um objetivo tresloucado: tornar o seu livro não só a versão oficial, como também a versão exclusiva das aparições, custasse o que fosse. Para isso ele pegou um livro concorrente, Anais de Nossa Senhora de Lourdes, escrito pelos padres Dubois e Sempé, o da gargalhada, e, com a autorização do bispo, o leu para Bernadette. Ora, como este livro fora escrito predominantemente com base em testemunhos de moradores de Lourdes e peregrinos, ele veio a lume marcado tanto pela profundidade afetiva das observações como por distorções, comuns a quem colore a realidade a partir das emoções do coletivo. Após a leitura Bernadette fez várias correções, que Lasserre pôs por escrito, para acrescentar ao seu livro, com o objetivo, ainda não explícito de “desmascarar”, a obra dos padres. O excesso de zelo ou de subserviência da Madre Superiora acabou por levar Bernadette a autorizar um texto, que não só desmentia algumas coisas escritas pelos padres, como dava a entender que ela desautorizava a versão deles.
Foi um escândalo. O padre Sempé foi parar em Nevers, ante uma Bernadette esparramada em lágrimas. Foi feito um pedido para que Lasserre tirasse as observações de Bernadette do livro, o que ele recusou-se, e por causa disso foi afastado definitivamente de Bernadette e do seu círculo mais próximo, e ainda teve o dissabor de ver dois de seus livros, sobre assuntos religiosos, colocados na lista dos livros proibidos pela igreja: o Index. Quanto a Lasserre, ele continuou católico e superamigo de Lourdes. Escreveu a biografia do padre Peyramale, contribuiu muito com a construção e divulgação do santuário, e ainda escreveu outros livros sobre Bernadette. Ele, aparentemente, era uma personalidade de transição, ainda católico no sentido tradicional, mas capitalista em outros, um pouco contagiado pelo novo espírito que começava a mudar a Europa pre-industrial, para o melhor e o pior. Onde ele caiu, Bernadette se manteve de pé, graças à sua fé, ao seu incrível senso de realidade, que a levou, cedo, a descobrir que a verdadeira importância das coisas deste mundo está na sua transitoriedade.   

http://www.idoj.in/articles/2013/4/1/images/IndianDermatolOnlineJ_2013_4_1_43_105473_u1.jpg
http://www.idoj.in/

Quem pensa que vida de santo são só milagres, visões, sucesso, uma vida pop, como está se tornando comum, não sabe de nada. A essência da santidade está na cruz, para onde Bernadette olhava, sempre que as dores pareciam consumi-la acima de suas forças. E para que ninguém imagine que a sua santificação saiu “barata”, a foto, acima, mostra como teria ficado a sua perna depois, depois de ter contraído tuberculose nos ossos. Imagine-se o quão doloroso não seria o tratamento de uma doença dessas no final dos anos 1870, sem penicilina, anestesia precária, etc.?  

http://fr.lourdes-france.org/sites/default/files/lourdes_bernadette_soubrious_chasse_nevers.jpg
http://fr.lourdes-france.org/

Bernadette morreu em 16 de abril de 1879, no convento que professou, em Nevers, de onde nunca saiu. Seu cadáver exumado três vezes, 1909, 1919, 1925, apresentava um estado de conservação admirável, e até hoje não satisfatoriamente explicado. Mas, ATENÇÃO! O rosto acima não é o do cadáver de Bernadette, mas antes o de uma máscara de cera, que foi colocada sobre o seu rosto e suas mãos. A pele do cadáver já empreteceu e murchou sobre os ossos, mais ou menos como as múmias egípcias. Não é algo agradável de ver, nem é essa a mensagem que nos passa o cristianismo. Antes, este corpo foi feito para a putrefação mesmo, não tem porque ficar incorrupto, importa-nos antes assenhorarmo-nos do corpo glorioso, que teremos após a ressurreição final. O atual, que se vá... 

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