Crônicas

domingo, 11 de outubro de 2015

HISTÓRIA DA IGREJA (BASEADA EM H. JEDIN) – I

Prof Eduardo Simões

A Providência Divina guia a história

         Os desígnios de Deus são tão misteriosos quanto surpreendentes e magníficos em seus efeitos finais. Quem poderia imaginar que da fusão de duas civilizações tão diferentes e distantes uma da outra, poderia florescer uma instituição religiosa tão abrangente e duradoura como a Igreja Católica, ela própria tão misteriosa e espetacular quanto as circunstâncias que a originaram?
         Para não estender demasiado esse relato, tomemos como ponto de partida o centro do mundo ocidental antigo, ao fim da Segunda Guerra Púnica, em 201 a.C., quando a elite política de um povo agrícola, amante do trabalho, prático, voluntarioso, muito apegado á sua cidade e estranhamente cônscio de uma missão universal (1) decidiu que estava na hora de dar uma lição no Reino da Macedônia, que tivera a infeliz ideia de aderir ao lado cartaginês.
Entretanto é importante considerar outro objetivo em mais uma guerra longínqua, muito mais poderoso, mais motivador, que a cultura belicista onipresente,  que, se não chegava aos extremos dos gregos, nem por isso deixava de embalar os sonhos dos adolescentes romano. Não, isso só não bastava para uma elite tão pragmática como eram os senadores patrícios e seus sequazes, que não perdiam de vista a enorme vantagem econômica advinda da conquista do território grego, cortado por importantes rotas terrestres, enquanto margeava as mais importantes rotas marítimas do Mediterrâneo Oriental, por onde circulava uma imensa riqueza. Se as fontes de matéria-prima do Ocidente já estavam garantidas, com a derrota de Cartago, por que não expandir, agora, para o Oriente, de lendária riqueza?
Após a decisão de uma assembleia dividida, ao convite de intervenção de importantes cidades gregas, um exército romano invade a Grécia, e após muitas vicissitudes, graças bom uso de uma arma tipicamente romana: a ação diplomática astuciosa, que dividia o lado oposto, as legiões conseguem uma vitória esmagadora sobre a falange macedônia, encerrando uma curta guerra (200 a 197 a.C.).
A vitória dos romanos na Macedônia, entretanto, rompera o equilíbrio de forças entre as potências do Mediterrâneo Oriental, rebentos opacos, abortos do império de Alexandre Magno, em especial daquele que se tinha como mais capacitado para encerrar os outros sobre o seu domínio: o Reino Selêucida, na Síria, cujo rei, Antíoco III, não tinha motivos para querer a presença de uma potência estrangeira ascendente, numa área que já considerava como de sua natural influência. Ademais, se a guerra com Roma era inevitável, que acontecesse logo, enquanto esta era novata na região, e vinha de uma guerra longa e custosa contra Cartago.
Antíoco toma a iniciativa, em 192, só para descobrir da inutilidade de confrontar o rolo compressor das legiões, que evoluíam, céleres, ao ápice de sua operacionalidade. Em 189 a.C., um exército romano, acompanhado por soldados de cidades gregas aliadas, desembarca na Ásia e aplica uma formidável derrota no exército selêucida, muito mais numeroso. Esses acontecimentos foram vitais para um pequeno povo, que vivia no centro do Oriente Médio, na Palestina, e que vinha a sofrer grandes dificuldades na sua convivência com os dois colossos, a Síria Selêucida e o Egito Ptolomaico, que lhes marginavam as fronteiras Norte e Sul. Esse povo eram os judeus.
Barrados no Ocidente pelo colosso latino, os selêucidas procuraram uma presa menor ao sul, o Egito Ptolomaico, mas nem por isso desprezível em sua capacidade de produzir riquezas desde tempos imemoriais, retomando o caos bélico engendrado pelos generais de Alexandre, os diádocos, após a morte daquele, que não paravam de buscar pretextos para guerras de anexação, desestabilizando áreas comerciais de primeira grandeza, coisa que os rústicos agricultores do Lácio logo perceberam como muito prejudiciais aos seus interesses. Mas como naquele momento, Roma, apesar de seu formidável poder de recuperação, precisava de tempo para se reorganizar internamente e se recuperar de tantas guerras, por isso fingiu-se desinteressada.
O campo de disputa das duas potências helenísticas acabou sendo justo a Palestina, que ficara sob a zona de influência egípcia, mas que possuía algo de que o Reino Selêucida precisava urgentemente para preservar a sua independência política: dinheiro, para pagar as contas da guerra contra os romanos, em especial a nota promissória assinada em Apameia, em 187 a.C., quando do tratado de paz. No seu desespero os reis selêucidas buscaram o caminho mais fácil: saquear templos, a começar por Antíoco III, que morreu na tentativa de saque ao templo de Baal, na Elimaida, não sem antes assegurar, no campo de batalha, a posse da Palestina, tomada aos egípcios.
Por volta de 180 a.C., finalmente, os selêucidas descobrem o caminho para o tesouro do Templo de Jerusalém, enviando para lá um de seus mais importantes personagens, um ministro do rei Seleuco IV, chamado Heliodoro, que, segundo o relato de 2 Macabeus (3,1-40), um tanto lendário, um tanto instrucional, não terminou bem – é possível que ao invés da intervenção de seres divinos tenha havido uma viva e bem-sucedida reação dos judeus ao saque de seu tesouro sagrado, o que explicaria a extrema má vontade e violência com que, daí por diante, os selêucidas os trataram. Tantas vexações absurdas e sem remédio (2) levaram um grupo de valorosos lutadores, chefiados pelo aguerrido patriarca de uma família também aguerrida, os Macabeus, a iniciar uma sangrenta guerra de guerrilhas, que era tudo que os selêucidas não queriam naquele momento, embora não conhecessem outra forma de debelá-la, que não a força bruta, agravando o conflito, enquanto se depauperavam os cofres públicos.
Judas, filho do patriarca, atento à conjuntura internacional, procurou se aproximar dos romanos, que, em 168 a.C., voltaram a atuar decisivamente na região, obrigando, com um ultimato, Antíoco IV a evacuar suas tropas do Egito. Essa aliança era, por sua vez, do interesse dos romanos uma vez que ajudava a criar problemas àquela que ainda era a única potência em capaz de lhe causar problemas consideráveis, além de tumultuar uma área de imenso valor estratégico: a Palestina – o capítulo 8 de 1 Macabeus traz detalhes desse tratado, retocado em outras circunstâncias (1 Mc 14,16-19.24; 12,1-4; 15,15-21), único em sua benignidade e abrangência, o que demonstra o quanto os romanos estavam atentos à importância da Palestina e à especificidade da nação judaica.


                    https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ed/Ancient_Levant_routes.png
Wikipedia
O mais importante entroncamento de rotas comerciais terrestres e marítimas da Antiguidade, unindo diretamente grandes centros produtores e consumidores da Ásia Menor ou Anatólia (atual Turquia), Egito, Palestina, Mesopotâmia, unindo-os, indiretamente, a grandes centros produtores e consumidores do oeste da Índia, até a China. No mapa nos vemos, em roxo, o chamado Caminho do Mar ou Caminho dos Filisteus, que saía do Egito, passando pela Península do Sinai, onde ganhava o nome de Caminho de Hórus, pontilhada por uma série de estalagens-fortificações, a um dia de viagem uma da outra, chegando até a cidade de Megido (atual Síria), flexionando-se para leste, até atingir a cidade de Damasco (idem).
Caminho dos Reis, de vermelho, começava em Heliópolis, no Baixo Egito, e atravessava o deserto do Sinai, também protegida por fortalezas, até chegar em Aqaba ou Eilat, de onde seguia para norte, paralelo ao rio Jordão, até chagar em Damasco, de onde seguia para leste, até Resafa, nas margens do rio Eufrates.
Na parte de baixo, do mapa, vemos uma linha marrom, sobre a Península Arábica: é a Rota do Incenso, por onde seguiam caravanas vindas do sul da Arábia trazendo cobiçadas mercadorias não só produzidas na península, como as que chegavam de barco, nos portos situados ao sul, vindas da Índia e da China. Vemos também um traçado marrom, dentro do Mar Vermelho, embaixo, no mapa, que é a variante marítima da Rota do Incenso. A linha marrom, seguindo o Nilo, é uma rota comercial secundária, assim como outros traçados marrons que aparecem no mapa.
Vemos também, na parte de cima do mapa, traços marrons sobre o Mar Mediterrâneo. Eles representam as principais rotas comerciais da navegação de cabotagem da bacia oriental do Mediterrâneo. A mais próspera. A potência que controlasse essas praias controlaria esse comércio.
Como se vê, da terra palestina podiam não brotar leite e mel, mas quem as possuísse poderia comprar quanto leite e mel precisasse, mas também precisaria estar sempre atento e vigilante, contra a ambição de povos vizinhos e distantes.

À medida que os romanos consolidavam a sua posição de grande mediadores ou governadores da bacia mediterrânea, estabilizando-a, faziam confluir para ela um enorme caudal de produtos vindo de todas as partes do mundo então conhecido, e alhures, auferindo dessa circulação de mercadorias uma enorme riqueza, enquantoo Reino Selêucida se esvaía em inúmeras guerras evitáveis e desastrosas intervenções, frutos de sua política externa personalista e inconsistente. Após mais de 20 anos de batalhas e escaramuças, Simão Macabeu toma a cidadela de Jerusalém, em setembro de 141, e dá fim ao domínio selêucida da Palestina. Os romanos só observavam, satisfeitos. Essa letargia, porém, foi sacudida pelo surgimento de uma nova e agressiva potência na Ásia, também de olho na importância comercial daquela região: a Partia, que, em 139 a.C., derrota e captura o rei selêucida Demétrio II.
Em 133 a.C., os romanos têm uma surpresa inesperada: Átalo III, rei de Pérgamo, um dos reinos mais ricos e estáveis da Ásia Menor, atual Turquia, doa o seu reino em testamento à Roma! Enquanto isso, os selêucidas continuavam, agravando a situação de seu estado com lutas intestinas pelo poder, cada vez mais intensas e destrutivas. Os nabateus e os armênios, que negociavam com os romanos, avançam sobre o território ou a carcaça do Reino Selêucida. No final dos anos 80 foi a vez dos romanos imitarem aos selêucidas, e dar início a uma sangrenta guerra civil, dirigida por seus mais brilhantes generais, Mario e Sila, em benefício deles próprios.
Como a situação na região estava ficando muito confusa e instável, com a expansão de reinos periféricos, como o do Ponto, ameaçando importantes rotas comerciais, inclusive com a presença cada vez mais ousada dos partos, os romanos, pacificados internamente, resolveram que era hora de agir mais diretamente na região, e despacharam para lá o seu mais competente general, Cneu Pompeu, com um fornido exército, que numa rápida campanha submeteu o Reino do Ponto e da Bitínia, descendo em seguida na direção de Jerusalém, nessa ocasião envolvida em sangrentas disputas familiares pelo poder.
A pequena nação judaica, reinstalada na Palestina, no centro do Oriente Médio, em tempo relativamente recente, aferrava-se vigorosamente à sua religião e a costumes tradicionais para preservar o seu legado religioso, tido por eles como uma missão de caráter universal, da mesma forma que os romanos tinham a sua, embora de caráter mais secular.
Nessa fase do desenvolvimento de seu conceito de nação, urgia marcar uma diferenciação bem clara entre o judeu e o não judeu – pelo menos foi isso que eles perceberam da leitura dos profetas, embora haja outras passagens na direção oposta, pregando uma integração com outros povos para criar um reino universal para Yahweh, aumentando o fosso cultural com os povos ao redor, o que não era muito propício a conseguir a boa vontade destes para a missão que àqueles fora confiada. A diplomacia e a política de alianças não eram, e parece que ainda não é, o forte desse povo tão original. Mesmo entre eles as divisões imperavam, e se acirravam, a partir de entendimentos mutuamente excludentes da Palavra de Deus. O seu espírito de partidarismo, talvez derivado de um forte sentimento tribal, que os unia numa “grande tribo”, mas os subdividia em pequenos grupos, “tribos” internas, inconciliáveis, criadas a partir do retorno de suas lideranças do conhecido Cativeiro da Babilônia, lá por volta de 538 a.C. Avancemos paulatinamente.
A religião mosaica sempre teve como centro de dinâmico e estabilizador o Templo de Jerusalém, gerido por uma poderosa classe sacerdotal, escorada pela tribo dos levitas. Ora, com a destruição do Templo e a dispersão e morte de sacerdotes e levitas, por Nabucodonosor, e a sua transferência forçada para uma cidade que não compactuava em absoluto com a sua fé, os deportados judeus tiveram que se adaptar à nova situação.
Em primeiro lugar, desenvolveram uma estrutura leiga, substituta do Templo, não em matéria de rituais solenes, serviços litúrgicos, mas como preservadora da Lei, a única herança de Jerusalém, que eles puderam levar para a Babilônia. Essa estrutura é a sinagoga, que até hoje é o sustentáculo não só da fé como da cultura ancestral judia, enquanto eles se aferram ao que restou do Templo de Herodes, e à esperança de um dia reconstruírem-no no mesmo lugar do original. A sinagoga, portanto, nasce da veneração do homem comum judeu pelas Sagradas Escrituras, a Lei (Torá), enquanto se propõe a ser um depositário e guardião fiel, para não dizer: literal, daquilo que a tradição determinou ser a Palavra de Deus, cujo descumprimento levou a tantas desgraças.
Em segundo lugar, com a dispersão da classe sacerdotal e da forma oficial, estatal, de culto, perdeu-se também a forma tradicional e segura de interpretação dos livros sagrados, antes adstritos aos sacerdotes a aos levitas graduados e reconhecidos, morando entre os fieis. A leitura e a interpretação da Bíblia teve que abrir-se a vários grupos leigos muito piedosos, cuja diversidade de interesses acabou marcando indelevelmente essa interpretação. E assim a Lei acabou se tornando um sério fator de divisão interna, que iria colocar os judeus frente a novos e mortais desafios, nem sempre respondidos adequadamente.
Entre os vários grupos que surgiram em torno da Lei encontram-se os assidins ou assideus [citados em 1Mc 2,42], que se destacavam pela sua piedade e culto à lei extremados. Segundo Karl Baus (em Jedin, 1966, pg 114-115), eles eram “homens sérios que buscavam a última e mais profunda vontade de Deus, expressa na Lei... Esta vontade de Deus lhes parecia tão sublime que os levaram a ‘levantar uma cerca ao redor da Lei’, como que a protegê-la de toda transgressão, inclusive involuntária. Os assideus queriam servir à lei com uma obediência absoluta, ainda que a custa de sua própria vida [como em 1Mc 2,29-38]” (tradução livre). Sobre esse grupo, a versão online da Jewish Encyclopedia narra que alguns deles chegavam a fazer rasgados louvores à santidade do rei Saul, expressa no famoso episódio de 1Sm 24, quando este, precisando ir ao banheiro, entrou numa gruta para se aliviar, para que os céus não vissem a sua nudez, enquanto lançam as maiores críticas contra Davi, que ousou bisbilhotar o rei, em um momento tão íntimo. A mesma interpretação é dada ao episódio em que Micol recrimina a Davi por dançar diante da Arca, trajando uma pequena tanga (2Sm 6,20-23). Era ela, e não o autor bíblico, quem tinha razão; Davi que tomasse ‘vergonha na cara’.
Imagine-se pessoas com esse grau de pudícia, tendo que conviver no meio de representações estatuárias de homens e mulheres inteiramente nus, algumas, inclusive, representando divindades! Um Deus despido! Que falar de ídolos antropomórficos masculinos, apresentados com o órgão genital ereto, associados a cultos de fertilidade? Um horror! Talvez daí tenha nascido a expressão judia ‘goim’, para designar os não judeus, cuja pronúncia imita o grunhido de um porco.
O grupo dos assideus, que se formara ao longo da retomada da Palestina pós-exílio, irá em bloco para a resistência macabeia, embora não adira à dinastia por eles fundada ao fim da expulsão dos selêucidas. Desse grupo, por um processo de evolução natural, surgirão os fariseus e os essênios, segundo o historiador judeu Flávio Josefo.

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Os fariseus constituíam o mais forte grupo religioso judeu, quando do nascimento de Jesus, e destacavam-se não só pelo culto extremado e literal à Lei, assim como à “Tradição dos Antigos”, num grau de minúcia estonteante. O orgulho de pertencer a esse grupo transparece no seu próprio nome “fariseus”, que em hebraico quer dizer “separados”, e foi destacado por Jesus na parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,10-13).
Sobre eles diz Karl Baus: “os fariseus tornaram ainda mais impenetrável a ‘cerca ao redor da Lei’, pois cuidaram de fixar para cada situação da vida a atitude correta exigida por Aquela... O intento de enquadrar todas as situações possíveis da vida diária, num quadro interpretativo da Lei, conduziu a uma exegese em que qualquer partícula verbal tornava-se importante, e das coisas mais secundárias, sacava-se as mais estranhas consequências. Muito mais danosa era a inexorável atitude casuísta, daí derivada, com que se considerava as questões morais, já que impossibilitava ou deformava o livre exercício de decisões morais, por parte do indivíduo. Mas nisso, os fariseus se viam obrigados [pelas circunstâncias mais variadas da existência da vida em sociedade] a fazer, em casos particulares, concessões que contradiziam a seus próprios princípios, pois tinham que impor regras e preceitos que fossem igualmente realizados por todos” (idem, pg  116). Da compulsão para as minúcias, típica desse grupo, produziu-se a proliferação dos mandamentos, que dos nove ou dez originais passaram a 613, todos igualmente obrigatórios.   
Dentro do movimento fariseu surgiram duas escolas ou tendências interpretativas da Lei: a de Shammai, que tinha uma abordagem mais rigorista, e a do rabino Hilel, que propunha uma interpretação mais flexível, e que foi, por um tempo, orientada pelo célebre Gamaliel, citado na Bíblia como juiz de Pedro e João (At 5,34-39) e mestre de São Paulo (At 22,3) – agora imaginem: se Paulo, que era da tendência mais moderada, foi capaz de fazer o que fez com Estevão e de combater os cristãos como o ardor descrito nos Atos dos Apóstolos, com que violência não agiam os outros?
         Politicamente falando eles se comportavam como “neutros” diante do domínio romano, uma vez que só lhes interessava o mundo espiritual, e embora fosse mais lógico que no fundo aspirassem uma teocracia, estavam, entretanto, alijados desse processo pela feroz resistência a eles imposta pela classe sacerdotal, associada à dinastia dos asmoneus, que lhes movia oposição, a maioria das vezes sangrenta.
    Outro grupo muito curioso foi o dos essênios, que, segundo Josefo, procurou viver uma radicalidade espiritual à semelhança das antigas comunidades de profetas. Derivados dos assideus, eles, provavelmente, viviam isolados em pequenas comunidades urbanas e rurais, tão fervorosas quanto escandalizadas com o rumo que tomavam os conflitos políticos e religiosos em Israel, optando, a partir de um momento ainda não completamente elucidado nem explicado em suas razões mais íntimas, romper tanto com o aparato fariseu como com o sacerdotal. O centro desse movimento situava-se vale de Qumran, perto do Mar Morto, e aparentemente tinha uma estrutura semelhante a de um monastério cristão tradicional, que associado às suas crenças e costumes básicos, fez muita gente, no final do século XX, acreditar que eles foram...


         ...Os mestres de Jesus e de João Batista

        
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         Em 1947/48 o mundo dos estudos acadêmicos, arqueológicos, da Bíblia foi abalado com a notícia         de que um pastor beduíno jordaniano havia descoberto manuscritos muito antigos, dentro de grandes ânforas de barro, ocultas em cavernas, cujo conteúdo denunciava serem eles uma parte da biblioteca de uma importante comunidade, senão a mais importante, dos essênios, situada próxima a um lugar, chamado pelos árabes de Khirbet Qumran – um pequeno vale, por onde eventualmente corre um fio de água na estação chuvosa.
Até aquele momento, só se conhecia dos essênios o que fora escrito por Flávio Josefo, fazendo pairar sobre eles a desconfiança de uma lenda ou informação mal recolhida, ainda mais pelas citações surpreendentes, muito elogiosas, feitas por aquele historiador. Isso fez com que alguns avançassem na tese que Jesus, e principalmente João Batista, teriam sido influenciados pelos essênios – uma longa temporada com os essênios, recebendo a sua formação, explicaria o silêncio que paira sobre o Batista, depois de seu nascimento maravilhoso. Durante um tempo, os essênios foram uma sombra se interpondo entre Jesus e a natureza divina de sua pessoa e mensagem.
Agora, porém, que os textos desses manuscritos foram todos traduzidos podemos concluir o seguinte:
            a) Eram zelosos guardiães da letra Lei; tanto ou mais que os fariseus.
         b) Acirrando ainda mais a oposição que os fariseus faziam às grandes famílias sacerdotais, os essênio pregavam o confronto total e aberto com os sacerdotes do Templo, tratando inclusive ao Sumo Sacerdote de “Sacerdote Ímpio”, afirmando serem eles, os essênios, os verdadeiros defensores da autêntica tradição sadoquita – os sadoquitas eram a família oficial de sumo sacerdotes, antes do Cativeiro.
         c) Eram dirigidos por um chefe geral chamado de “Mestre da Justiça”, o seu equivalente ao Sumo Sacerdote, que dirigia um conjunto de outros sacerdotes e oficiais menores, em uma estrutura hierárquica bem definida e centralizada.
           d) Eram fortemente ritualistas, tanto ou mais que os fariseus, e tinham em muito alta conta o conceito de “pureza” e “contaminação”, que devia leva-los à prática de contínuas abluções.
         e) Tinham o hábito de repartir seus bens entre si e de fazer refeições comuns.
      f) Eram muito mais rigorosos em questão de moral que as outras tendências judaicas, mas ao contrário destas valorizavam muito a virgindade; um tabu entre os judeus.
      g) Eram muito apegados a uma abordagem apocalíptica dos eventos futuros, coisa que não interessava muito às outras correntes, e que apresentavam de uma forma vívida e dramática, por meio de grandes catástrofes cósmicas e acontecimentos extraordinários.
         h) Também esperavam a um Messias, mas sua visão a esse respeito era peculiar: haveria dois Messias; um para a Casa de Aarão (um Messias sacerdote), e outro para a Casa de Davi (um Messias político), sendo que aquele se imporia inexoravelmente sobre o último.
         Etc. etc.
         Entretanto há diferenças marcantes como registra McKenzie (2003), como a proeminência política do sacerdócio apontando para uma teocracia, a exacerbação ritualista, a prescrição de odiar os “filhos das trevas”, a mensagem de enfrentamento militarista, o interesse minucioso pelo calendário, o caráter esotérico das reuniões, o isolamento em relação a Jerusalém, a submissão estrita à lei de Moisés, o culto do sábado (ainda mais estrito que o dos fariseus), que são frontalmente distintos dos ensinamentos de Jesus.
         Podemos dizer agora, depois que todos os manuscritos foram traduzidos, que não se encontrou neles nenhuma menção, nem a Jesus Cristo nem a João Batista, ou aos cristãos, que está sepultada definitivamente a tese da procedência qumrânica de nossa Igreja, deixando-a para os teimosos de sempre e àquelas pessoas que gostam de exercitar, seja a sua fantasia seja a sua habilidade de confundir...
  
         Havia também o grupo sacerdotal, formado por 24 grandes famílias que, no tempo de Jesus, monopolizavam o serviço no Templo, intimamente associadas à estrutura de poder vigente, e, por isso mesmo, muito próximo aos invasores e estrangeiros que dominavam sobre a nação. A formação do grupo sacerdotal é obscura e os textos bíblicos não esclarecem muito ou adicionam acréscimos em determinadas situações, que os especialistas crer que os fatos ali narrados possam ter sido, de alguma forma glosados, Esse
Esse grupo era orientado e dirigido por um sumo sacerdote, suposto descendente da família de Sadoc, da casa de Aarão, que monopolizava o sumo sacerdócio, e que foi elevado a essa dignidade pelo rei Salomão, contrariado com o apoio que outra família de sumo-sacerdotes, a de Abiatar, dera às pretensões dinásticas de Adonias (1Rs 2,26-27), e esse cargo esteve nas mãos desse grupo, até que Onias II foi destituído pelo rei selêucida Antíoco Epifanes, em 175 a.C., e substituído por Jasão, o último descendente da linhagem de Sadoc no posto, sendo, a partir daí, ocupado por gente do interesse dos selêucidas, até que o macabeu Jônatas assumiu a função, em 153 a.C., gerando um grande ressentimento nos grupos religiosos mais tradicionais, que não reconheciam essa manobra, uma vez que os macabeus não eram descentes da família de Sadoc – os macabeus, por causa disso, foram fortemente combatidos pelos fariseus e pelos essênios, que se diziam sadoquitas e se recusavam a frequentar o Templo regido por um grupo sacerdotal espúrio.
         Com o passar do tempo, em especial no governo dos Herodes, o posto de sumo-sacerdote se tornou um posto cada vez mais político, autorizando-nos a dizer que esse grupo, que normalmente fazia muita oposição aos fariseus, assumiu, em matéria de religião, um posicionamento cada vez mais distante do povo e pragmático, cuidando apenas de seus interesses políticos e econômicos. Era o grupo mais conceituado do sistema, e o que mais aproveitava das benesses do poder. Em termos religiosos eles se manifestavam por meio da facção dos saduceus, que defendiam a inspiração exclusiva dos cinco livros da Lei, supostamente escritos por Moisés, em contradição com os fariseus, que aceitavam os livros proféticos e sapienciais, além de outras questões teológicas como a negação dos anjos, da ressurreição dos mortos, a crença em um messias sacerdotal, etc. Tendiam a defender o livre arbítrio, enquanto os fariseus defendiam a predestinação, e eram mais rigorosos ainda na interpretação da Lei.
         Por fim havia o grupo dos zelotes, nacionalistas fanáticos, que, aparentemente, receberam apoio sempre crescente do povo mais simples, mais sugestionável à sua propaganda apaixonada. Para eles, a principal questão resumia-se a uma só: expulsar romanos e estrangeiros da Terra Santa, de preferência pela força das armas, afirmando o poderio judaico, afinal se os macabeus, assim como Davi, conseguiram derrotar povos mais poderosos, porque eles não conseguiriam derrotar o gigante romano? O seu messias é exclusivamente político, como exclusivamente judaica deve ser a Palestina. O horror ao estrangeiro, em geral, é a marca da sua proposta política, levada a cabo por meios que hoje nós chamaríamos de “terroristas” – em geral levavam punhais escondidos nas roupas, com o qual assassinavam, em via pública, a vítima escolhida, e por isso os romanos os chamavam de sicários (homens da adaga). Não perdiam a oportunidade de insuflar o povo reunido, por qualquer pretexto que fosse. O importante era criar o máximo de problemas para o invasor.

         A luta heroica dos macabeus redundou tanto na expulsão dos selêucidas como na criação de uma monarquia nacional, encabeçada por eles, é claro, que recebeu o nome de dinastia dos asmoneus, devido a um tal Asmoneu, que, segundo Flávio Josefo, seria pai do velho Matatias, mas, embora tenham conseguido a independência do país, eles não conseguiram pacificá-lo, nem acomodar as facções apaixonadas que se formaram, após vitória. Em primeiro lugar foram reabertas antigas feridas raciais-nacionalistas, com a destruição completa do templo samaritano, no monte Garizim, em 128 a.C., por João Hircano (135-105), como era do gosto dos grupos religiosos internos, em especial o fariseu, mas ele alarmou e afastou o apoio desses grupos ao pretender enfaixar em suas mãos tanto o poder político como o religioso, lançando os alicerces de uma teocracia controlada pelos asmoneus, vista como intolerável por esses grupos, uma vez que os asmoneus não descendiam de nenhuma família sacerdotal, que apoiasse as suas pretensões.
O resultado disso foi o acirramento das tensões internas, e a luta pelo poder divide a família. Aristóbulo I (105-104), filho de João, manda prender a mãe, a quem havia sido atribuído o poder, e manda matar o irmão, mas seu reinado foi breve, e sua morte foi vista por muitos como um presente de Deus. A dissenção entre os macabeus e a oposição farisaica atinge o seu auge no reinado de Alexandre Janeu (104-76), quando este mandou executar centenas de fariseus e outros, que haviam se rebelado contra ele, numa guerra civil particularmente sangrenta, que contou uns 50 mil mortos – diz Flavio Josefo, que ele teve a pachorra de levar 800 prisioneiros para Jerusalém, onde os fez crucificar, ao mesmo tempo em que mandava, sob suas vistas, degolar suas esposas e filhos, enquanto ele se banqueteava com suas concubinas, apreciando o “espetáculo”.
Nesse universo de guerras, crises e mudanças bruscas, internas e externas, os judeus faziam e refaziam, de acordo com a expectativa do grupo ao qual se filiavam, um conceito fundamental, muito discutido após o Exílio: o de Messias.
Esse termo misterioso, que ao mesmo tempo evocava uma realidade tão abrangente quanto espetacular, o reino universal de Jahweh, a partir de Israel, fez sua aparição desde os primeiros relatos da Bíblia – a quem o ligue a Gn 3,15 – ganhando cada vez mais consistência política, como o advento do Reino de Israel, sob a dinastia davídica, que fez ver em diversas passagens do Primeiro Testamento, que esse obscuro, mas importantíssimo personagem seria um descendente e continuador da dinastia de Davi, no sentido mais humano e político do termo, conforme aparece em várias passagens (Gn 49,8-12; 2 Sm 7,5-16; 1Cr17,4-14; Sl 2; 20; 21; 45;72; 89; 101; 110; 132,17-18; Is 6-9; etc.), embora se possa ver nelas, também, certas variações que dão a entender que se estava diante de um conceito, de um acontecimento, tão grandioso, que a mente humana não pode discernir em toda a sua complexidade e maravilha, pelo menos naquele momento histórico.
As profecias sobre o Messias ganham muita força nos profetas do exílio e pós-exílio, como Jeremias, Ezequiel, etc., além do misterioso personagem visto por Daniel em 7,13, e que Jesus dá a entender se referir a ele, em Mt 8,20, justo no momento em que os judeus não teriam muitas razões para acreditar de literalidade do conceito de messias, como um poderoso rei conquistador, e num Israel transformado em cabeça de um império mundial. Talvez fosse esse o propósito da tão dura provação que eles experimentavam, o exílio na Babilônia: prepará-los para um tipo de messias como Jesus, pacífico e espiritual. Mas os judeus dessa época, lendo-a de uma perspectiva nacionalista e excludente, a partir de uma mágoa irrefreável, aferraram-se ainda mais à ideia do messianismo político, sem falar de outros agravantes.
Israel perdera o seu centro religioso, e não tanto pelo templo, transformado em ruínas pelos babilônios, mas pelo fim da dinastia davidíca e na dispersão e corrupção da classe sacerdotal, sem falar do fim do carisma profético que, no passado, fazia alguns homens escolhidos de intérpretes e porta-vozes abalizados da Palavra de Deus, guias de Israel. A partir daí se multiplicam as interpretações e os grupos religiosos, cada um com ênfase naquilo que lhe interessava ver nas Sagradas Escrituras, e no que, ou em quem, seria o Messias de Israel. De certa forma, para muitos judeus, em especial os mais humildes, a imponência majestosa do Segundo Templo, obra mestra da “raposa” herodiana, a que até os apóstolos se mostram sensíveis (Mc 13,1), devia representar por si só uma segurança e um substituto à altura de uma classe sacerdotal distante, palaciana, ou de um provável messias terreno.

McKenzie (2003) assim coloca a situação desse conceito no tempo de Jesus: “não há uma concepção coerente: às vezes a restauração de Israel é imediatamente seguida pelo fim do mundo; outras vezes, não há em absoluto um reino terreno de Israel, com toda conclusão messiânica do mundo sendo extraterrena... afirma-se que o reino terreno durará mil anos... As nações são condenadas ou destruídas e a Palestina é renovada, tornando-se um paraíso terrestre. O próprio Messias... amiúde ele é um ser humano preexistente que vem do céu. Ele é o conquistador dos povos e o rei do reino terrestre. A importância do sacerdócio no judaísmo tardio... faz surgir a concepção de dois messias, um Messias rei davídico e um Messias sacerdote...”(pg 608-609).

Notas
(1) O poeta Virgílio, da época de Jesus, escreverá em seu poema Eneida, que trata da chegada à Itália do herói troiano Eneias, lendário ancestral dos fundadores de Roma, os seguintes versos, que mais parecem uma profecia distante: “Lembra-te, romano, que é a ti que cabe governar as nações, e esta será a tua missão: impor os caminhos da paz, perdoar os vencidos e submeter os soberbos”.
(2) Em 169 a.C., quando voltava de uma campanha no Egito, Antíoco IV saqueia o Templo de Jerusalém, segundo o historiador grego Políbio.

Bibliografia
Cornell, Tim e Matthews, JohnRoma legado de um império; col. Grandes Impérios e Civilizações; trad Maria Emilia Vidigal; Del Prado; 2 vol; Madrid, 1996;
Diacov, V. e Covalev, S.; História da Antiguidade – Roma; trad João Cunha Andrade; Fulgor; São Paulo; 1965
Jedin, Hubert (org); Manual de Historia de la Iglesia – e la Iglesia primitiva a los comienzos de la gran Iglesia - tomo primero; versión castellana Daniel Ruiz Bueno; Herder; Barcelona 1966;
McKenzie, John L.; Dicionário bíblico; trad. Álvaro Cunha e outros; 8ª edição; Paulus; São Paulo; 2003.

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