Crônicas

domingo, 8 de março de 2015

ASSUNÇÃO DE MARIA

Prof Eduardo Simões

               Ave!
               Durante o seu discurso na Última Ceia Jesus disse: “o Paráclito... que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26) assim como: “quando vier o Espírito da Verdade, ele vos guiará na verdade plena” (Jo 16,13) – sem falar que João também lembra que nem tudo que Jesus disse ou fez ficou registrado por escrito (20,30) – deixando bem claro que ainda havia coisas novas a serem ensinadas, que a presença histórica de Cristo não esgotava todos os detalhes da revelação de Deus na história dos homens. Para evitar que o diabo, “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44), se intrometesse entre Deus e o fiel isolado, deturpando tudo, Jesus prescreveu a mediação necessária da Igreja Católica, a única no Ocidente a manter a sucessão apostólica, dizendo: “quem vos ouve a mim ouve, e quem vos despreza a mim despreza” (Lc 10,16).

Embasamento Histórico
                A crença na Assunção começou muito cedo no cristianismo oriental, dominado pelo Império Bizantino, de sorte que lá pelo século IV já estava presente, na liturgia local, a festa da Assunção de Maria, ou seja, a elevação dela de corpo e alma para junto de Deus, antecipando a Ressurreição Universal, graças a um favor especial de seu filho, Jesus, sendo comemorada em 15 de agosto.
                Não dá para saber exatamente como e onde começou essa tradição – os relatos mais antigos que chegaram até nós são fantasiosos, cheios de detalhes ‘incríveis’, típicos da literatura apócrifa, mas que não impedem a existência de outros testemunhos, mais objetivos, que, infelizmente, não sobreviveram, além de uma característica muito sintomática: nunca houve culto, nem busca, por relíquias de Maria, desde os primeiros tempos da Igreja, e a crença tradicional no fato era forte o bastante para que o Imperador Maurício oficializasse, lá pelo ano 600, a solenidade da celebração da Assunção de Maria, o que a tornava obrigatória a toda igreja bizantina. No Ocidente essa postura encontrou mais resistência e a festa só foi incorporada à liturgia no século IX, pelo Papa Leão IV.
                Fora, e ao redor, das esferas oficiais, porém, a questão era alvo de calorosos debates, envolvendo, como defensores da crença, muita gente importante na história da Igreja Católica Ocidental e Oriental, doutores, bispos e santos de primeira linha como: Santo Efrém, São João Damasceno; São Germano, Patriarca de Jerusalém, São Modesto de Jerusalém, São Epifânio de Salamis, São Gregório de Tours, São Irineu de Lion, São João Crisóstomo, São Boaventura, Santo Antonio de Pádua, São Bernardo de Claraval, São Alberto Magno, São Tomaz Vilanova, São Tomaz de Aquino, São Bernardino de Sena, Santo Alonso de Orozco, São Roberto Belarmino, São Francisco de Sales, Santo Afonso Maria Ligorio, etc.
                Desses, um dos mais antigos, fervorosos e qualificados defensores da crença na Assunção foi João Damasceno, um dos mais ilustres doutores da Igreja, que deixou homilias muito inspiradas sobre o tema: “Convinha que aquela que no parto manteve ilibada virgindade conservasse o corpo incorrupto mesmo depois da morte. Convinha que aquela que trouxe no seio o Criador encarnado, habitasse entre os divinos tabernáculos. Convinha que morasse no tálamo celestial aquela que o Eterno Pai desposara. Convinha que aquela que viu o seu Filho na cruz, com o coração traspassado por uma espada de dor de que tinha sido imune no parto, contemplasse assentada à direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que era do Filho, e que fosse venerada por todas as criaturas como Mãe e Serva do mesmo Deus” (Sermão sobre a Assunção de Maria, séc. VIII, retirado da Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de Pio XII, no site do Vaticano). 
                Ao longo dos séculos firmou-se, no Oriente, uma sólida tradição a respeito do assunto, com a crença definida que Maria, primeiro morreu e foi depois ressuscitada, pela graça e o poder de Jesus e, em seguida assunta ao céu, tendo de fato assumido a morte, como o seu filho, reforçando o seu papel de co-redentora – alguns chegaram a assumir a versão de que Maria, de fato, não morrera, mas apenas caíra em um sono profundo, do qual foi desperta no céu, junto à Trindade, o que faz com que o episódio de sua passagem à outra vida seja também nomeado como “Dormição”, enquanto no Ocidente a questão era tratada de uma forma mais geral, sem se prender a detalhes.
                Entretanto a questão sobre um pronunciamento dogmático do Papa a esse respeito continuou empolgando aos católicos –  segundo a Wikipedia em francês, de 1854 a 1945 oito milhões de fieis, 1.332 bispos e 83.000 sacerdotes já havia escrito aos papas desse período pedindo uma definição oficial a esse respeito, ou seja, o reconhecimento oficial da assunção de Maria – até que, em 1º de novembro de 1950, após uma consulta a todos os bispos católicos, sobre o acerto e a conveniência de proclamar o dogma da Assunção de Maria, Pio XII fê-lo solenemente na bula Munificentissimus Deus, confirmando a crença na Assunção de Maria aos céus, ao coração da Santíssima Trindade. Dos bispos consultados, quase dois mil, 90% foram a favor da proclamação imediata do dogma, enquanto 10% levantaram obstáculos acerca do momento, que eles ainda não viam como propício. Uma unanimidade impressionante! A crença na Assunção de Maria torna-se, então, um elemento fundamental da identidade católica, e o católico que não conseguir crer nisso e repercutir essa crença corre o risco de se ajuntar aos menores no Reino de Deus.
                Erram, pois, aqueles que seguem acriticamente fontes informativas de massa, como a Wikipedia em inglês, por exemplo, que em seu verbete Assumption of Mary, cujo autor pinça sorrateiramente uma declaração solta do historiador católico irlandês Eamon Duffi, “não há, em absoluto, qualquer evidência histórica sobre esse assunto”, e prossegue audaciosamente que “entretanto a Igreja Católica nunca negou ou afirmou que esse ensinamento é baseado em contos apócrifos. Os documentos da igreja silenciam sobre esse assunto, preferindo se basear em outras fontes para fundamentar sua doutrina”. Sobre isso podemos contra-argumentar:
                a) Que seria uma evidência histórica nesse caso: uma testemunha ocular, uma fotografia? Não há testemunha ocular ou fotografia nem para a ressurreição de Cristo, de onde alguns afirmarem, hoje, que Cristo apenas sofreu um colapso natural na cruz, e depois acordou, ou, como fizeram os chefes judeus do seu tempo, que o seu corpo foi roubado pelos discípulos (Mt 28,11-15).
                b) Erra por anacronismo e ignorância quem ainda afirma que “apócrifo” é o mesmo que “falso”. Apócrifo é sinônimo de “não revelado”, ou “não digno de pertencer ao conjunto da revelação”, sem se afirmar qualquer coisa sobre a veracidade do seu conteúdo. Certamente que há “mentiras”, distorções doutrinais e muito voo da imaginação nos livros apócrifos, em quantidade e qualidade diferentes, conforme a obra, mas também há muitas afirmações verdadeiras, como, por exemplo, a existência histórica de Jesus e de muitos personagens bíblicos. Os apócrifos são o que chamamos hoje “romance histórico”. O seu conteúdo não pode ser chamado de “história”, no sentido científico do termo, mas há muita informação neles que fazem parte da história verdadeira, científica, e que não podem ser negadas apenas por serem incluídas na trama desses romances.
                Por fim podemos dizer que a Igreja não faz uso de fontes apócrifas na defesa do dogma da Assunção, simplesmente por não precisar delas.
                Aos protestante-evangélicos que não creem e criticam esse dogma, resta-nos um questionamento: se o Espírito Santo sempre assiste a quem busca com sinceridade o sentido da revelação nas Sagradas Escrituras, o que tem justificado não só a livre interpretação da Bíblia, como a separação de Roma e a criação de uma infinidade de igrejas, descumprindo frontalmente um desígnio explícito de Deus (Jo 17,20-23), como é possível dizer que o Espírito Santo não assistiu a tanta gente tão qualificada, com tantos anos dedicados à sua Igreja, amparados por séculos de orações, estudos, e debates? Só se o Espírito Santo tiver uma prevenção muito grande contra a Igreja Católica, mas creio que será difícil encontrar tal citação nas escrituras!

Embasamento bíblico-teológico
                E certo que a Bíblia não cita explicitamente a assunção de Maria ao “céu”, mas também não cita os sacramentos, que várias igrejas protestantes mais antigas, criadoras e defensoras do princípio da exclusividade bíblica, aceitam; sem falar que, pelo que vimos no primeiro parágrafo deste artigo, isso não é problema, sequer pode ser dogma de fé. Mas decerto que, para nós católicos, a Bíblia é a principal fonte de fé e revelação, e foi dela que os sacerdotes, bispos e papas se basearam para solicitar, decretar e sustentar até hoje o dogma da Assunção.
                Em primeiro lugar temos a promessa feita por Deus à mulher, quando da ‘mancada’ no Paraíso, de que será ela quem conduzirá a luta contra a serpente, “porei hostilidade entre ti e a mulher”, e lhe “esmagará a cabeça” (Gn 3,13), e não o homem. Logo não é de admirar que a uma mulher, e que mulher!, seja dado um privilégio que não é estranho à Bíblia, pois já no Primeiro Testamento há o relato da assunção de Henoc (Gn 5,24) e de Elias (2Rs 2,11). Henoc e Elias eram homens santos, mas nem de longe mereceram o privilégio de Maria de gestar Deus na carne, sinal concreto de uma graça e uma fé ainda não igualadas por ninguém.
                Alguns indícios também foram deixados em algumas outras passagens, como no Salmo 16,10: “não abandonarás minha vida no Xeol, nem deixarás que teu fiel veja a cova” – aqui se fala do “amigo”, e não do Filho, logo não se refere a Jesus, e quem foi amigo mais íntimo de Deus que Maria? – ou o Salmo 132, 8 , que relata a transladação da Arca da Aliança de seu abrigo precário para o Templo em Jerusalém, e em determinado ponto diz: “levanta-te, Iahweh, para o teu repouso, tu e a arca da tua força”. Ora, é tradição antiquíssima evocar Maria como a “Arca de Aliança”, a mais sublime e espetacular arca possível, e por aí se vê como é inadequado e esdrúxulo algumas comunidades católicas reconstruírem fisicamente a Arca da Aliança dos judeus, e com elas saírem em procissão, com um ostensório encima. Isso é um empobrecimento do cristianismo e um desrespeito aos judeus. Maria, como a Arca da Aliança do Segundo Testamento, o grande sinal da Encarnação, deve estar onde Deus está, como é dito no Salmo 44, 11-18.
                O Cântico dos Cânticos, também faz alusão a uma mulher muito especial que “desponta como a aurora, bela como a lua, fulgurante como o sol, terrível como esquadrão com bandeiras desfraldadas” (Ct 6,10). João teve essa mesma visão no Apocalipse, onde a descreve como “um sinal grandioso”, em 12,1, que os versículos seguintes, 2-6, indicam claramente que se trata de Maria, dando a entender, inclusive que ela foi posta num lugar, imune ao mal e à morte, representados pelo dragão – versículos 13-16 – embora essa mulher também possa representar a Igreja, da qual Maria é a figura perfeita. Aonde, porém, nesse mundo se pode estar absolutamente imune ao mal e à morte, sem falar que o sinal aparece no céu, e não emergindo da Terra.
                A Assunção de Maria é um corolário necessário do dogma da Imaculada Conceição, devendo pois, logicamente que, aquela que nasceu sem pecado, e da qual não se narra nenhum pecado ou deslize no texto bíblico, não experimentasse a corrupção corporal, quiçá a morte, como no Salmo 16 acima citado. Ela faz parte do conjunto de promessas e profecias que Deus de antemão fez, e que nos revelou nos Livros Sagrados, como quando em Isaías 60,13 ele afirma que glorificará o lugar de seus pés, falando metaforicamente em relação ao Templo. Quanto mais glória não merecerá o templo tocado por seus pés de verdade, o útero de Maria? Outras citações que a esse respeito poderíamos aduzir são: Sl 44,18 (os povos te louvarão eternamente), Jt 14,7 (bendita sejas tu em todas as tendas de Judá e entre todos os povos), que penas que os irmãos na fé, seguindo judaísmo, excluíram esse livro!, em Lc 1,28 (ave cheia de graça), 1,42 (bendita és tu entre as mulheres) e ainda 1,48 (doravante todas as gerações me chamarão de bem-aventurada).
                Quem ousará criticar os católicos por acreditar e aprimorar, para a Salvação da humanidade, profecias tão maravilhosas, feitas à Maria e a nós, da parte de Deus?
                     Amém!


As citações bíblicas foram retiradas da Bíblia de Jerusalém, da editora Paulus, que recomendamos aos que querem um texto mais fiel ao original.

Nenhum comentário:

Postar um comentário