Crônicas

domingo, 15 de março de 2015

CÂNON BÍBLICO – II

Prof Eduardo Simões


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         Durante o seu discurso na Última Ceia Jesus disse: “o Paráclito... que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26) assim como: “quando vier o Espírito da Verdade, ele vos guiará na verdade plena” (Jo 16,13) – sem falar que João também lembra que nem tudo que Jesus disse ou fez ficou registrado por escrito (20,30) – deixando bem claro que ainda havia coisas novas a serem ensinadas, que a presença histórica de Cristo não esgotava todos os detalhes da revelação de Deus na história dos homens. Para evitar que o diabo, “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44), se intrometesse entre Deus e o fiel isolado, deturpando tudo, Jesus prescreveu a mediação necessária da Igreja Católica, a única no Ocidente a manter a sucessão apostólica, dizendo: “quem vos ouve a mim ouve, e quem vos despreza a mim despreza” (Lc 10,16).

Cânon Bíblico Cristão

         Nascido e criado à sombra do Templo e da sinagoga, o cristianismo sempre se apresentou como um continuador, e ao mesmo tempo um aperfeiçoador, das tradições judaicas (Mt 5,17) – por aí se vê o absurdo e a confusão mental de quem é cristão e alimenta sentimentos antissemitas, embora nessa classificação se queira incluir, hoje, sem razão, até aqueles que divergem da política externa do estado israelense – por isso não é de admirar que os cristãos tenham dado muito valor, e investido muito na formação e preservação de seus escritos sagrados, assim como os islâmicos, todos devedores de antigas tradições hebraicas.
         Embalados pela euforia dos acontecimentos que envolveram a pessoa de Jesus de Nazaré, os cristãos acreditaram, a princípio, que a simples lembrança e transmissão oral daqueles acontecimentos maravilhosos bastariam, afinal o fim do mundo estava próximo – o Senhor não fora tão taxativo a esse respeito (Mt 16,28; 24,34; Mc 13,30; Lc 21,32)? – sem se preocuparem muito com a parte mais objetiva, mais burocrática, de uma fé organizada em uma igreja que, séculos depois, ainda estaria vivenciando a espera da volta do Senhor.
         As primeiras gerações de cristãos, porém, foram chamadas de volta à realidade pela consciência de que, boa parte do apocalipse pregado por Jesus, nos capítulos acima, se referia ao fim do Templo, em Jerusalém e ao nascimento de sua prórpia Igreja, detentora da plenitude do Espírito Santo, ficando o apocalipse do mundo para uma data distante e não sabida, enquanto nasciam e se difundiam no meio da comunidade fiel escritos preocupantes, que misturavam realidade e fantasia acerca do divino Mestre, os apócrifos, além de ensinamentos estranhos, chamados heresias, como a de Marcião, que rejeitava o Primeiro Testamento, e a do Montanismo, que adicionava novas revelações, inspiradas pessoalmente pelo Espírito Santo, sem falar de perseguições sangrentas e minuciosas do Império Romano, que ameaçavam fazer desaparecer a nova religião. Era preciso organizar o que já estava escrito, até por uma questão de sobrevivência.
         Logo de cara foi confirmado o uso já disseminado do Primeiro Testamento na versão dos Setenta, a Septuaginta, com a presença dos livros e passagens que seriam, depois, rejeitados pelos judeus, porque elas foram usadas por Jesus e os Apóstolos, e, sem dúvida, pelos judeus de seu tempo, afinal Jesus sempre foi um judeu exemplar – das cerca de 350 passagens do Prmeiro Testamento feitas nos Evangelhos, cerca de 300 são, com certeza, retiradas dos Setenta; e várias citam passagens de livros deuterocanônicos (1).
         Não havia dúvidas naquela época: a versão bíblica dos Setentas fazia parte da coleção canônica dos judeus, e nessa linha se punham as principais autridades e estudiosos da igreja dos séculos I e II, que fazem abundantes citações de trechos dessa versão, entre os quais nomeamos: a Didaquê (o primeiro catecismo da Igreja, atribuído aos apóstolos), São Clemente Romano, São Policarpo, Santo Inácio de Antioquia, o Pastor de Hermas (uma obra literária de espiritualidade do século II, que chegou a fazer parte, para alguns, dos livros sagrados do Segundo Testamento), São Justino, São Ireneu, Orígenes, Tertuliano, São Cipriano, São Hipólito Romano, etc. A unanimidade era completa.

As Primeiras Dúvidas e a Grande Recusa
         A partir do século III, começaram a surgir as primeiras dúvidas sobre a canonicidade dos deuterocanônicos, vindas principalmente de padres orientais, que em sua convivência mais íntima com elementos judeus, de quem bucavam auferir o maior conhecimento possível do Primeiro Testamento, parte essencial da doutrina cristã, acabaram assimilando a história de que os judeus palestinos nunca haviam admitido os livros deuterocanônicos como inspirados, quando muito os consideravam uma leitura edificante, recomendável pela sua mensagem de sabedoria humana e seu alto teor ético-moral, apenas. Seriam como os livros de autoajuda nos dias de hoje.
         Grandes nomes do cristianismo oriental começaram a questionar, sem, no entanto, deixar de citá-los frequentemente, aos livros deuterocanônicos, dando inclusive uma pista provável da perda de sua qualidade canônica: o espírito de confrontação entre judeus e cristãos; nesta linha se colocaram São Melitão de Sardes, Santo Atanásio, São Cirilo, São Epifânio, São Gregório Nazianzeno, Santo Hilário de Poitiers, etc. Cada um deles, num grau diverso, colocava suas dúvidas sobre esses livros.
         O grande golpe, da parte católica, contra os deuterocanônicos, veio justo de São Jerônimo, um intelectual de porte invejável, com uma erudição incomum, que foi convidado pelo Papa Dâmaso, para fazer a tradução para o latim dos textos bíblicos originais, e que, em 385, para melhor dar prosseguimento a essa missão, se dirige à Palestina, para ter acesso mais abundante e garantido com os originais, e para colher alguma ajuda de intelectuais judeus, mais familiarizados com esses textos. Não foi fácil, e inclusive um deles, o Rabi ben Anina só pode se encontar com Jerônimo à noite, por medo dos outros judeus.
         Dessa convivência tão íntima, quanto necessária, com os estudiosos judeus, nasceu em Jerônimo a certeza de que os deuterocanônicos não faziam parte do cânon original judeu original, acreditando piamente na tradição que se criou a respeito do “Concílio de Jamnia”, e em várias ocasiões advertiu a amigos, por meio de cartas, sobre essa característica dos deuterocanônicos, sem deixar de citá-los em inúmeros de seus trabalhos, aludindo sempre à opinião dos judeus. Na sua tradução, chamada Vulgata, ele coloca os deuterocanônicos, traduzidos à custa de muitos pedidos, em um anexo.
         A postura de Jerônimo, porém, não se justificava tão fácil. Os documentos em grego mais antigos, contendo a versão dos Setenta, como o Códice Sinaítico, o Códice Vaticano e o Códice Alexandrino, dos séculos IV e V, trazem os deuterocanônicos misturados com os outros, como se gozassem da mesma autoridade, e, gradualmente, essa questão foi se encerrando dentro da Igreja, graças à maioria esmagadora daqueles que, no Oriente e no Ocidente, defendiam sua canonicidade, o seu caráter de revelação divina, como São Basílio Magno, São Gregório Niceno, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, Santo Agostinho, São Leão Magno, Santo Isidoro de Servilha, etc. etc., assim como declarações solenes em diversos concílios como Hipona, em 393; Cartago III, 397; Cartago IV, 419; uma carta do Papa Inocêncio I, de 405.
         Além desses momentos, em várias outras ocasiões, a Igreja sempre se manteve fiel à sua proposta original de confiar irrestritamente em Jesus Cristo e nos Apóstolos, que não tratariam com menoscabo uma questão tão importante, na seriedade, e  assistência do Espírito Santo para aqueles que diligentemente traduziram os livros Sagrados,  continuando considerar os deuterocanônicos divinamente inspirados, como aparece nos catálogos de livros sagrados elaborados posteriormente como o Códice Claromontano, do séc. III e IV; o cânon Mommseniano, séc. IV; além dos Concílios de Florença, 1441, Trento, 1546, e Vaticano I, 1870, e Vaticano II.
         Para a Igreja Católica, oficialmente o que há são os livros canônicos, a Bíblia completa, divididos em dois tipos: os protocanônicos, mais antigos, escritos em hebraico, e que são aceitos pelos judeus, e os deuterocanônicos, escritos em grego, em épocas mais recentes, não aceitos pelos judeus, como que fazendo uma bela analogia com a parábola dos trabalhadores de última hora, que, apesar de terem chegado depois, ganham o mesmo salário e merecem o mesmo respeito que os mais antigos (Mt 20, 1-16). A formação do cânon do Segundo Testamento foi muito mais tranquila, e no final do século IV já estava completamente definida a coleção dos 27 livros que temos hoje.

         Tudo estava resolvido e em paz, pois até a Igreja Ortodoxa Grega, que se separara de Roma, em 1054, também aceitava os deuterocanônicos, mas no horizonte despontavam nuvens escuras, prenunciando uma grave tempestade, e uma grande reviravolta.

Nota
(1O leitor poderá uma relação exaustiva dessas passagens no seguinte endereço: http://minhateca.com.br/caspaz/Doutrina+Cat*c3*b3lica/Cita*c3*a7*c3*b5es+dos+Deuterocan*c3*b4nicos+no+Novo+Testamento,80177991.doc

(citações da Bíblia de Jerusalém, Paulus)

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