Crônicas

quarta-feira, 18 de março de 2015

CÂNON BÍBLICO III

Prof Eduardo Simões


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         Durante o seu discurso na Última Ceia Jesus disse: “o Paráclito... que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26) assim como: “quando vier o Espírito da Verdade, ele vos guiará na verdade plena” (Jo 16,13) – sem falar que João também lembra que nem tudo que Jesus disse ou fez ficou registrado por escrito (20,30) – deixando bem claro que ainda havia coisas novas a serem ensinadas, que a presença histórica de Cristo não esgotava todos os detalhes da revelação de Deus na história dos homens. Para evitar que o diabo, “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44), se intrometesse entre Deus e o fiel isolado, deturpando tudo, Jesus prescreveu a mediação necessária da Igreja Católica, a única no Ocidente a manter a sucessão apostólica, dizendo: “quem vos ouve a mim ouve, e quem vos despreza a mim despreza” (Lc 10,16).

O Desafio Protestante

         Em 1517, por conta de um contexto complexo de mudanças, incompreensões mútuas e interesses diversos, tem início a chamada Reforma Protestante, ou simplesmente Reforma.
         O objetivo original de Lutero era, ao que parece, provocar uma mudança postiva dentro da Igreja, embora o seu voluntarismo, típico dos intelectuais de sua época, não tenha prestado muita atenção aos inúmeros e difusos interesses, nada espirituais, que logo envolveram as suas iniciativas. A Cúria romana, por sua vez, “deitada em berço esplêndido”, foi incapaz de perceber, no início, a gravidade e a extensão do movimento, não tomando, talvez, as medidas mais adequadas. Um pouco mais de diálogo e convivência tolerante teria mudado o rumo da história, sem falar de medidas preventivas, tomadas muito antes, para evitar que as coisas chegassem àquele ponto?
         Seja como for, em pouco tempo o movimento já saíra de controle, e já não se tratava mais de reformar a Igreja, mas de criar outra igreja e justificar a divisão definitiva do cristianismo ocidental. Agora, qualquer coisa que pudesse destacar as diferenças entre as igrejas, e evitar confusões, era bem vinda. Sem querer dizer que esse foi o motor principal de suas ações, o certo e que os protestantes optaram por seguir estritamente o cânon judeu, recusando os chamados livros deuterocanônicos.
         A verdade é que católicos e protestantes, nesse assunto, lutavam como que nas sombras, pois a destruição que os romanos fizeram na Palestina, durante as evoltas de 66-77 e 133-135 foi de tal monta que quase nada sobrou da antiga cultura hebraica – para se ter uma ideia, até pouco tempo atrás, os documentos mais antigos do Primeiro Testamento, disponíveis, haviam sido encontrados no Cairo, Egito, por volta de 1900, datados do séculos IX e X, quase mil anos após a destruição de Jerusalém. Tal atitude dos romanos só encontra paralelo na destruição de Cartago.
         Lutero e os católicos de seu tempo, não tinham sequer essa decoberta com que agarrar, para dar base aos seus argumentos quanto ao cânon bíblico. O desconhecimento objetivo da realidade palestina no tempo de Jesus era completo. Nesse transe, os protestantes agiram movidos por uma lógica puramente humana: quem pode entender mais sobre o cânon do Primeiro Testamento, que aqueles que os escreveram e divulgaram: os judeus? E seguiram sem restrições o cânon menor dos judeus, excluindo os deuterocanônicos, no que foram seguidos pelos atuais evangélicos.
         Para reforçar ainda mais a defesa de suas teses, e para mais se distanciar da Igreja de Roma, Lutero tentou, inclusive, avançar em alguns livros do Segundo Testamento, tentando excluir da Bíblia protestante a Epistola de Tiago, Hebreus, Judas e o Apocalipse, sendo demovido desse intento por outras lideranças protestantes. Os judeus não estavam mais tão sozinhos em seu intento de pregar a superioridade de seu cânon bíblico sobre o dos cristãos, pois uma boa parcela destes agora assumia a sua tese.
         A Igreja Católica reagiu no Concílio de Trento, em 1546, reafirmando solenemente a canonicidade dos deuterocanônicos – não é verdade, porém, o que alguns dizem, de que a Igreja Católica só afirmou a canonicidade dos deuterocanônicos em Trento; o que a Igreja fez foi reforçar, afirmar com solenidade, aquilo que a tradição católica declarava desde o tempo dos apóstolos: que os livros deuterocanônicos eram inspirados, e que deviam fazer parte da Bíblia, com igual valor que os outros. Mas o “mal” já estava feito, e até hoje é notável como os escritores católicos relutam em citar passagens desses livros.
         Em 1720, no seu intento de enquadrar a Igreja Ortodoxa na Rússia, o tzar Pedro o Grande, com a ajuda de um bispo nomeado por ele, Theofane Prokopovich, começou por tornar a igreja russa independente da grega, não mais dirigida por um patriarca, como o são as igrejas ortodoxas, mas por um colegiado, o Santo-Sínodo, seguindo o modelo protestante, completamente submisso ao estado. A Igreja russa se torna uma mera repartição pública, e de quebra assume, em um sínodo interno, a tese protestante da exclusão dos deuterocanônicos, transformada em um dogma.
         Nessa luta, atacada duramente por filósofos iluministas franceses, e outros ideólogos burgueses, contando apenas com o apoio da massacrada Igreja Ortodoxa Grega, com seus patriarcados instalados em países dominados por povos muçulmanos, assistindo à expansão econômica e cultural dos países protestantes ao redor do mundo, quando do Imperialismo nos séculos XIX e XX, manteve-se a Igreja Católica fiel à sua crença original na canonicidade dos deuterocanônicos, até que uma reviravolta espetacular aconteceu, bem na metade do século passado.

A Reviravolta de Qumran

         Em 1947, um pobre pastor de ovelhas muçulmano, tangia seus rebanhos nas encostas próximas ao Mar Morto, quando deu, por acaso, com uma gruta, onde encontrou objetos estranhos: várias bilhas enormes de argila, contendo escritos muito antigos. Esses objetos, levados a especialistas, revelaram ser uma descoberta espetacular: eram extos de livros sagrados judaicos quase completos, além de regras de convivência de uma comunidade religiosa judia, todos datados do tempo de Jesus Cristos!
         Aquilo era uma REVOLUÇÃO, em termos bíblicos, pois antecipavam em mil anos os textos mais antigos que se conhecia sobre a Bíblia hebraica – o que até então gerara muita especulação, e acusações de que os textos bíblicos que nós líamos eram na verdade totalmente, ou muito, diferentes daqueles que os antigos judeus liam, que muita coisa havia sido inserida neles para justificar a fé de cristãos e judeus. O que se achou neles, porém, foi incrível em vários sentidos, pois confirmaram que os textos das Bíblias atuais são idênticos aos que eram lidos nos tempos de Jesus.
         A maior surpresa, porém, veio quando se achou, misturados entre os escritos considerados sagrados pelos judeus, trechos do Primeiro Testamento na tradução dos Setenta, e, inclusive, trechos de livros deuterocanõnicos como Tobias e Eclesiástico. Ora, aqueles escritos faziam parte da biblioteca de uma comunidade de piedosos judeus, os essênios, que eram tão rigoristas, que julgavam os sacerdotes de Jerusalém excessivamente mundanos e pouco fieis às legítimas tradições judaicas, o que imediatamente levantou a questão: como um grupo religioso tão fechado e radical teria, no meio de seus escritos, trechos inteiros de uma Bíblia que, supostamente, nunca fora considerada canônica pelos antigos judeus? Alguns, inclusive, estavam escritos em grego!
         A única explicação possível á a de que a versão bíblica dos Setenta, com os livros deuterocanônicos, que os judeus atuais rejeitam e os protestantes acusam de apóscrifos, eram sim considerados canônicos pelos judeus no tempo de Cristo. O único testemunho concreto que temos sobre os livros sagrados dos judeus no tempo de Jesus nos apontam sem, sombra de dúvida, que no tempo de Jesus, os livros deuterocanônicos, que a totalidade da versão dos Setenta, era sim usada e aceita pelos judeus como a Palavra de Deus.
         Que os judeus, pois, expliquem a si mesmos, de como permitiram que uma tradição tão espúria, aureolada por tantas historinhas banais, como a do Concílio de Jamnia, e reprimendas terríveis, como a do rabi Akiba, se imiscuíssem assim numa de suas mais legítimas e importantes tradições, e que, inclusive, eles não fizeram algo tão grave com a Palavra de Deus, só para confrontar os cristãos. Protestantes e russos agora sabem de onde vem o sopro mais forte do Espírito Santo.
         Pondo toda a sua fé em Cristo, e não em raciocínios humanos, por mais lógicos que parecessem, a igreja Católica consegue uma vitória espiritual insofismável, reforçando a sua credibilidade duas vezes milenar, e o seu papel como luz do mundo e de mais abalizada guardiã das tradições cristãs e hebreias.
         Assim seja!

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Wikipedia

Pedaços de um dos rolos da biblioteca dos essênios, em Qumran, que continha a parte da Bíblia hebraica referente aos 12 profetas menores, escrito em grego. A seta aponta para o nome de Deus, escrito em caracteres paleo-hebreus,

         Eis uma relação dos livros cânon bíblico católico, com suas abreviaturas e uma letra, P ou D, indicando se tratar de protocanônico ou deuterocanônico:
         Pentateuco:
         Gênesis, Gn, P; Êxodo, Ex, P; Levítico, Lv, P; Números, Nm, P; Deuteronômio, Dt, P. Cinco livros.
          Livros Históricos:
         Josué, Js, P; Juízes, Jz, P; Rute, Rt, P; 1 Samuel, 1 Sm, P; 2 Samuel, 2 Sm, P; 1 Reis, 1 Rs, P; 1 Crônicas, 1 Cr, P; 2 Crônicas, 2 Cr, P; Esdras, Es, P; Neemias, Ne, P; Tobias, Tb, D; Judite, Jd, D; Ester, Est, P; 1 Macabeus, 1 Mc, D; 2 Macabeus, 2 Mc, D. Dezesseis livros.
         Livros Sapienciais:
         , Jó ou Job, P; Salmos, Sl, P; Provérbios, Pr, P; Eclesiates, Ecle, P; Cântico dos Cânticos, Ct, P; Sabedoria, Sb, D; Eclesiástico, Eclo, D. Sete livros.
         Livros Proféticos
         Isaías, Is, P; Jeremias, Jr, P; Lamentações, Lm, P; Baruc, Br, D;Ezequiel, Ez, P; Daniel, Dn, P; Oseias, Os, P; Joel, Jl, P; Amós, Am, P; Abdias, Ab, P; Jonas, Jn, P; Miqueias, Mi, P; Naum, Na, P; Habacuc, Hab, P; Sofonias, Sf, P; Ageu, Ag, P; Zacarias, Zc, P; Malaquias, Ml, P. Dezoito livros.
         Ao todo 46 livros do Primeiro Testamento.
         Evangelhos;
         Mateus, Mt; Marcos, Mc; Lucas, Lc; João, Jo. Quatro livros.
         Histórico:
         Atos dos Apóstolos, Ap. Um livro
         Epístolas (Cartas) de São Paulo:
         Romanos, Rm; Primeira aos Coríntios, 1 Cor; Segunda aos Coríntios, 2 Cor; Gálatas, Gl; Efésios, Ef; Filipenses, Fl; Colossenses, Cl; Primeira aos Tessalonisenses, 1 Ts; Segunda aos Tessalonisenses, 2 Ts; Primeira a Timóteo, 1 Tm; Segunda a Timóteo, 2 Tm; Tito, Tt; Filemon, Fm, Hebreus, Hb (hoje há uma quase certeza de que hebreus não foi escrita por Paulo, nem sob suas ordens, mas ela, por tradição e, principalmente, por comodidade, afinal não se sabe exatamente quem seria seu autor, continua figurando no rol das epístolas paulinas). Quatorze livros.
         Epístolas Católicas (Têm esse nome porque não são dirigidas a nenhuma pessoa ou comubnidade em especial, como acontece com as cartas de Paulo, e nesse caso são consideradas como que dirgidas a toda Igreja):
         Tiago, Tg; Primeira de Pedro, 1 Pd; Segunda de Pedro, 2 Pd; Primeira de João, 1 Jo; Segunda de João, 2 Jo; Terceira de João, 3 Jo; Judas, Jd. Sete livros.
         Apocalipse, Ap. Um livro.
         Ao todo 27 livros.


(trechos bíblicos transcritos da Bíblia de Jerusalém; Paulus)

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