CÂNON
BÍBLICO - I
Prof
Eduardo Simões
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Fonte: tundratabloid.com
Durante o seu discurso na Última Ceia
Jesus disse: “o Paráclito... que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu
vos disse” (Jo 14,26) assim como: “quando vier o Espírito da Verdade, ele vos
guiará na verdade plena” (Jo 16,13) – sem falar que João também lembra que nem
tudo que Jesus disse ou fez ficou registrado por escrito (20,30) – deixando bem
claro que ainda havia coisas novas a serem ensinadas, que a presença histórica
de Cristo não esgotava todos os detalhes da revelação de Deus na história dos
homens. Para evitar que o diabo, “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44), se
intrometesse entre Deus e o fiel isolado, deturpando tudo, Jesus prescreveu a
mediação necessária da Igreja Católica, a única no Ocidente a manter a sucessão
apostólica, dizendo: “quem vos ouve a mim ouve, e quem vos despreza a mim
despreza” (Lc 10,16).
Cânon Bíblico Hebraico
A palavra “cânon” é de origem grega e
quer dizer “régua”, “medida”, mas de uma maneira mais especializada tem sido
usada ao longo dos séculos para designar o conjunto de verdades ou revelações
que aparecem como capitais, essenciais, às crenças de uma comunidade, que de certa
forma estabelecem o limite do que seria aceitável ou não, em termos de doutrina
religiosa e comportamentos, no seio de uma comunidade, além de outros sentidos
possíveis – na liturgia romana, “cânon” é o nome técnico da Oração Eucarística,
finalizada com uma aclamação trinitária: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a
Vós...”.
Segundo a Wikipedia em inglês o uso do
termo no sentido de coleção de livros divinamente inspirados, como a Bíblia,
por exemplo, começou com os cristãos, embora a ideia venha dos judeus, e por
isso começaremos analisando como se deu a formação do cânon hebraico, sua
coleção de livros sagrados, ou Primeiro Testamento, que terá muitas
repercussões na formação do seu similar cristão.
Para começar é necessário dizer que não
temos nenhuma informação segura sobre como se formou o cânon do Primeiro
Testamento, e que critérios a comunidade hebraica, ou a sua elite religiosa,
usava para definir que tal livro era sagrado ou não. Pelo que lemos do Primeiro Testamento podemos
deduzir que:
a) Aparentemente toda noticia ou
história socialmente relevante narrada por escribas, tanto ao palácio real como
do templo, era considerada como sagrada. Tudo o que acontecia ao povo de Deus,
tanto no âmbito profano como religioso, respeitando a moral do decálogo, era
considerado como digna de veneração. Essa percepção é reforçada pela citação de
vários textos, que hoje estão perdidos, para confirmar uma passagem bíbilica
atual (1).
b) Nem todos esses acontecimentos eram
colocados por escrito imediatamente após o ocorrido. Às vezes o texto era fruto
da compilação, e quem sabe até de reformulação, de antigas histórias presentes
na memória do povo – esse fato, mais o conflito de interesses entre grupos, que
normalmente ocorrem em uma sociedade humana, explicam certas passagens
contraditórias no texto, como personagens que em alguns lugares são
apresentados como fortes e virtuosos e noutras como fracos e titubeantes, como
é o caso de Aarão, o irmão de Moisés, e mesmo as duplicatas, como as duas
versões da criação do mundo, etc.
Do que dissemos acima podemos deduzir
que enquanto o povo judeu foi livre, ou teve a esperança de se tornar livre de
quem o oprimia, o cânon do Primeiro Testamento esteve aberto, e toda
contribuição a esse respeito era bem vinda, desde que servisse para sedimentar
ou esclarecer antigas crenças do povo judeu.
A Versão dos Setenta
Com o naufrágio político dos reinos do
norte e do sul, e a chegada à Palestina das forças de grandes impérios, contra
as quais os judeus não tinham a menor chance, a Palestina perdeu boa parte de
sua população judia original, que se espalhou pela orla do Mediterrâneo,
procurando manter-se fiel às tradições de seus antepassados, preservando, e
porque não dizer aprimorando, a mensagem da sua religião. Entre essas
comunidades destacou-se a estabelecida na cidade de Alexandria, no Egito, fugida
do paganismo intolerante e sangrento dos Selêucidas, uma dinastia formada por
um general de Alexandre da Macedônia, e que por anos lutou pelo domínio da
Palestina.
Na comunidade de Alexandria surgiu uma
coleção de livros, fruto da necessidade de traduzir os textos existentes do
hebraico para o grego, uma vez que a grande maioria dos judeus, principalmente
os que viviam fora de Palestina, já não falava mais o hebraico, mas apenas o
grego, que se tornara a língua comum da bacia do Mediterrâneo. Sobre essa
tradução surgiu uma lenda que acabaria por dar o nome ao cânon: 72 sábios
palestinenses – produto de 12 vezes 6, números muito significativos entre os
judeus – a pedido do faraó grego do Egito, se fecharam em 72 aposentos isolados
e produziram, ao final dos trabalhos, 72 traduções absolutamente iguais dos
livros sagrados, de onde o seu nome “Setenta”, “Septuaginta” ou “LXX”! Isso
teria ocorrido entre os anos 300 e 130 a.C.
Mas houve um “problema” envolvendo essa
tadução, pois ela não só traduziu os livros considerados sagrados pelos judeus
da Palestina, como adicionou sete livros novos, e alguns episódios nos livros
já aceitos como canônicos na Palestina. Mas tudo indicava que esses livros eram
aceitos naturalmente como canônicos no tempo de Jesus, tanto que ele e os
apóstolos citam vários trechos desses livros novos, chamados de
deuterocanônicos pela Igreja (2).
Com o advento do cristianismo, o
judaísmo foi fortemente desafiado, uma vez que o rabi galileu e seus discípulos
se apresentavam como o verdadeiro e mais perfeito Israel. Aquele disse: “não
penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes
pleno cumprimento” (Mt 5,17), e a este os chefes mandaram matar! Em Rm 9,1-13,
o mais ardoroso dos apóstolos fará uma comparação entre o Israel “da carne” e o
Israel “da fé”, profetizando a nítida preferência do Deus dos judeus em relação
a esses últimos (9,25-26).
O Fechamento do Cânon
O ápice da crise judaica no primeiro
séculos da era cristã aconteceu durante os anos de 66-70, quando aconteceu a
Primeira Guerra Romano-judaica.
Após o assassinato de Jesus e o
escorraçamento de seus principais discípulos, mais ou menos como se fizera com
os samaritanos, uns 200 anos antes, o partido dos fariseus e zelotes,
sentindo-se mais fortes, resolveram partir para a confrontação com o inimigo
romano, e declarar a independência da Palestina judaica.
O resultado dessa guerra, como sabemos,
foi catastrófico para os judeus, mas muito benéfico para o critianismo que,
solto das amarras do templo, partiu para a conquista do Império Romano e do
mundo, obtendo retumbante sucesso onde os judeus historicamente fracassavam,
por seu espírito excessivamente nacionalista que dificultava a universalização
da sua fé. Massacrados pelos romanos e superados pelos cristãos, a elite
judaica fechou-se ainda mais no seu exclusivismo, acirrando os traços nacionais
do judaísmo, até como uma forma de sobreviver incólume, embora estagnado, no
grande mundo para onde fora disperso. Há notícias de colônias judaicas da
Crimeia, na Rússia, à Espanha, no extremo Ocidente de então. A comunidade está
dispersa e sem o seu centro, o templo de Jerusalém, é preciso definir com
urgência o cânon dos livros sagrados, a única coisa que lhes restara. E tal foi
feito sem que saibamos exatamente como, tal o isolamento em que viviam. A isso
se somava um ressentimento profundo, que os fez tratar o restante dos homens
como “goim” (= povo não judeu), cuja pronúncia lembra o som do grunido de um
porco.
Desde cedo começou a se espalhar, entre os judeus, uma tradição dos primeiros séculos, de que lá por volta do ano 100, um grupo de rabinos, sob a influência do partido dos
fariseus – o único que escapou da destruição romana – se reuniu na cidade de
Jamnia, atual Yavne, em Israel, e lá decretou o fechamento oficial do cânon
hebraico, excluindo os livros e as passagens extras encontradas na versão dos
Setenta - essa historia também começou a fazer parte oficialmente das crenças de estudiosos e especialistas bíblicos, em 1871. Hoje em dia, porém, sabe-se que esse concílio não tratou desse
assunto, mas apenas da canonicidade de algumas obras como o Cântico dos
cânticos, Crônicas e Eclesiastes, levando-nos de volta à estaca zero, quanto ao
evento e os atores que determinaram o fechamento do cânon hebraico na sua
versão atual, de sorte que alguns autores chegam a afirmar que o principal critério
de fechamento do cânon hebraico foi fazer oposição ao cânon aceito pelos
cristãos.
O cânon aceito pelos cristãos, ora na
sua totalidade ora na esmagadora maioria, desde os primeiros tempos, foi a
versão dos Setenta, e para combatê-la os tratadistas hebreus determinaram ao
longo dos anos algumas condições para a aceitação de um livro como sagrado,
diferenciando o seu cânon do cânon cristão. Essas condições foram as seguintes:
a) O livro deveria originalmente ser
escrito em hebraico ou aramaico, a língua falada pelo povo.
b) O livro deveria ter sua canonicidade
sancionada pelo uso do povo hebreu no ambiente da Palestina.
c) O livro deve conter os grandes temas
da religião judaica tradicional, na visão dos fariseus, principalmente os que
se referem à eleição do povo hebreu e à aliança do Sinai.
d) O livro deveria ter sido composto
antes do tempo do profeta Esdras, mais ou menos 300 a.C., o que levantou
grandes debates sobre as canonicidade de alguns livros como Ester, Jonas,
Eclesiastes e Daniel, que fazem parte do cânon hebraico, mas foram escritos
depois dessa data limite, quando tradicionalmente se dizia haver cessado toda
profecia. O prórpio livro de Esdras foi escrito bem depois da existência desse
personagem!
Por conseguinte, os livros que a Igreja
hoje chama de “deuterocanônicos” ficavam absolutamente de fora, partindo da
suposição, não documentada é verdade, que o povo da Palestina não usava a
versão dos Setenta, mas apenas o rabi “herético” e “subversivo” dos cristãos, e
a sua “malta” de seguidores. O famoso rabi Akiba ben Iosef, um dos mais
importantes personagens da tradição religiosa judaica, morto na guerra de
133-135, chegou a afirmar que quem lesse os deuterocanônicos não teria parte na
vida eterna (ver o verbete “Developmente of the Hebrew Bible Canon”, na
Wikipedia em inglês). O rigorismo desse critério fica claro quando inclusive
partes de livros canônicos, como a conclusão de Mardoqueu em Est 10, o episódio
dos jovens na fornalha ardente, a acusação de Suzana e o episódio do dragão, em
Daniel, e a Carta de Jeremias, em Baruc, cujos originais foram escritos em
grego.
Outro elemento que igualmente nos
mostra o caráter arbitrário e um tanto indefinido dessas decisões, é que o
escritor judeu, Flavio Josefo, do século I, ligado à escola dos fariseus,
dividia a Bíblia hebraica em 22 livros, juntando vários com um nome só – por
exemplo, os doze profetas menores são contados como se fossem um livro apenas –
de sorte a que seu número coincidisse com o número das letras do alfabeto hebraico.
Outros, mais abertos à influência estrangeira, faziam a divisão do cânon em 24
livros, conforme o número de letras do alfabeto grego. Por aí se vê...
Porém, apesar dessas restrições tão
pesadas, os deuterocanônicos continuaram a ser usados e citados por vários estudiosos
judeus até a idade Média, e mesmo sendo lidos em algumas festividaddes, até que
esse “hábito” cessou por completo – o leitor que quiser se aprofundar mais
nesse assunto, acesse o endereço (www.mercaba.org/FICHAS/Apologetica.org/historia_canon_03.htm).
Os 24 livros do cânon hoje
aceito por judeus, protestantes e ortodoxos russos são: Os Livros da Lei (a
Torá), em número de 5; Os Profetas (Nevi’im) dividido em profetas anteriores:
Josué, Juízes, Samuel (juntos) e Reis (juntos), e profetas posteriores: Isaías,
Jeremias e Ezequiel, além dos doze profetas menores, todos juntos, num total de
8 livros; e os Escritos (Ketuvim) livros de sabedoria, entre os quaias se
encontram o livro de Daniel e Crônicas, em número de 11.
E tudo ficou em paz, até
que houve uma grande reviravolta...
Notas
(1) Os livros citados como
“canônicos” pelo Primeiro Testamento, mas que se perderam e dos quais não temos
outra notícia são:
- Livro de Jasher, ou Livro do Justo, citado em 2 Samuel e em
Josué.
- Livro das guerras de Iavé,
citado em Números.
- Anais dos reis de Israel e Anais dos reis de Judá, citados em 1
Reis.
- Livro do profeta Semeias e Livro do vidente Ado, citados em 2
Crônicas.
- Estatutos da realeza
(escrito por Samuel), citado por 1 Samuel.
- História de Salomão, citado
por 1 Reis.
- Anais do rei Davi, citado
por 1 Crônicas.
- Profecias de Aias de Silo,
citado por 2 Crônicas.
- Atos de Jehu, citado por 2
Crônicas.
- A visão de Isaías, citado
por 2 Crônicas
Etc. etc. – se o leitor quiser uma abordagem mais exaustiva sobre o
assunto recomendo, com certa cautela, o verbete da Wikipedia em inglês
“Non-canonical books referenced in the Bible”.
Algumas pessoas, mais afeitas à curiosidade que o recomendável,
suspiram, em alguns sites da internet, o quão bom seria se esses livros fossem
encontrados! Francamente, nós, os católicos, que temos a graça de receber a
Palavra de Deus encarnada, Jesus Cristo, transmitida sem falhas pela sucessão
apostólica, precisamos de alguma coisa a mais?
(2) Os livros deuterocanônicos
são: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2 Macabeus.
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