Crônicas

quinta-feira, 12 de março de 2015

CÂNON BÍBLICO - I

Prof Eduardo Simões


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Fonte: tundratabloid.com

         Durante o seu discurso na Última Ceia Jesus disse: “o Paráclito... que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26) assim como: “quando vier o Espírito da Verdade, ele vos guiará na verdade plena” (Jo 16,13) – sem falar que João também lembra que nem tudo que Jesus disse ou fez ficou registrado por escrito (20,30) – deixando bem claro que ainda havia coisas novas a serem ensinadas, que a presença histórica de Cristo não esgotava todos os detalhes da revelação de Deus na história dos homens. Para evitar que o diabo, “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44), se intrometesse entre Deus e o fiel isolado, deturpando tudo, Jesus prescreveu a mediação necessária da Igreja Católica, a única no Ocidente a manter a sucessão apostólica, dizendo: “quem vos ouve a mim ouve, e quem vos despreza a mim despreza” (Lc 10,16).

Cânon Bíblico Hebraico

         A palavra “cânon” é de origem grega e quer dizer “régua”, “medida”, mas de uma maneira mais especializada tem sido usada ao longo dos séculos para designar o conjunto de verdades ou revelações que aparecem como capitais, essenciais, às crenças de uma comunidade, que de certa forma estabelecem o limite do que seria aceitável ou não, em termos de doutrina religiosa e comportamentos, no seio de uma comunidade, além de outros sentidos possíveis – na liturgia romana, “cânon” é o nome técnico da Oração Eucarística, finalizada com uma aclamação trinitária: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a Vós...”.
         Segundo a Wikipedia em inglês o uso do termo no sentido de coleção de livros divinamente inspirados, como a Bíblia, por exemplo, começou com os cristãos, embora a ideia venha dos judeus, e por isso começaremos analisando como se deu a formação do cânon hebraico, sua coleção de livros sagrados, ou Primeiro Testamento, que terá muitas repercussões na formação do seu similar cristão.
         Para começar é necessário dizer que não temos nenhuma informação segura sobre como se formou o cânon do Primeiro Testamento, e que critérios a comunidade hebraica, ou a sua elite religiosa, usava para definir que tal livro era sagrado ou não.  Pelo que lemos do Primeiro Testamento podemos deduzir que:
         a) Aparentemente toda noticia ou história socialmente relevante narrada por escribas, tanto ao palácio real como do templo, era considerada como sagrada. Tudo o que acontecia ao povo de Deus, tanto no âmbito profano como religioso, respeitando a moral do decálogo, era considerado como digna de veneração. Essa percepção é reforçada pela citação de vários textos, que hoje estão perdidos, para confirmar uma passagem bíbilica atual (1).
         b) Nem todos esses acontecimentos eram colocados por escrito imediatamente após o ocorrido. Às vezes o texto era fruto da compilação, e quem sabe até de reformulação, de antigas histórias presentes na memória do povo – esse fato, mais o conflito de interesses entre grupos, que normalmente ocorrem em uma sociedade humana, explicam certas passagens contraditórias no texto, como personagens que em alguns lugares são apresentados como fortes e virtuosos e noutras como fracos e titubeantes, como é o caso de Aarão, o irmão de Moisés, e mesmo as duplicatas, como as duas versões da criação do mundo, etc.
         Do que dissemos acima podemos deduzir que enquanto o povo judeu foi livre, ou teve a esperança de se tornar livre de quem o oprimia, o cânon do Primeiro Testamento esteve aberto, e toda contribuição a esse respeito era bem vinda, desde que servisse para sedimentar ou esclarecer antigas crenças do povo judeu.

A Versão dos Setenta

         Com o naufrágio político dos reinos do norte e do sul, e a chegada à Palestina das forças de grandes impérios, contra as quais os judeus não tinham a menor chance, a Palestina perdeu boa parte de sua população judia original, que se espalhou pela orla do Mediterrâneo, procurando manter-se fiel às tradições de seus antepassados, preservando, e porque não dizer aprimorando, a mensagem da sua religião. Entre essas comunidades destacou-se a estabelecida na cidade de Alexandria, no Egito, fugida do paganismo intolerante e sangrento dos Selêucidas, uma dinastia formada por um general de Alexandre da Macedônia, e que por anos lutou pelo domínio da Palestina.
         Na comunidade de Alexandria surgiu uma coleção de livros, fruto da necessidade de traduzir os textos existentes do hebraico para o grego, uma vez que a grande maioria dos judeus, principalmente os que viviam fora de Palestina, já não falava mais o hebraico, mas apenas o grego, que se tornara a língua comum da bacia do Mediterrâneo. Sobre essa tradução surgiu uma lenda que acabaria por dar o nome ao cânon: 72 sábios palestinenses – produto de 12 vezes 6, números muito significativos entre os judeus – a pedido do faraó grego do Egito, se fecharam em 72 aposentos isolados e produziram, ao final dos trabalhos, 72 traduções absolutamente iguais dos livros sagrados, de onde o seu nome “Setenta”, “Septuaginta” ou “LXX”! Isso teria ocorrido entre os anos 300 e 130 a.C.
         Mas houve um “problema” envolvendo essa tadução, pois ela não só traduziu os livros considerados sagrados pelos judeus da Palestina, como adicionou sete livros novos, e alguns episódios nos livros já aceitos como canônicos na Palestina. Mas tudo indicava que esses livros eram aceitos naturalmente como canônicos no tempo de Jesus, tanto que ele e os apóstolos citam vários trechos desses livros novos, chamados de deuterocanônicos pela Igreja (2).
         Com o advento do cristianismo, o judaísmo foi fortemente desafiado, uma vez que o rabi galileu e seus discípulos se apresentavam como o verdadeiro e mais perfeito Israel. Aquele disse: “não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17), e a este os chefes mandaram matar! Em Rm 9,1-13, o mais ardoroso dos apóstolos fará uma comparação entre o Israel “da carne” e o Israel “da fé”, profetizando a nítida preferência do Deus dos judeus em relação a esses últimos (9,25-26).

O Fechamento do Cânon
        
         O ápice da crise judaica no primeiro séculos da era cristã aconteceu durante os anos de 66-70, quando aconteceu a Primeira Guerra Romano-judaica.
         Após o assassinato de Jesus e o escorraçamento de seus principais discípulos, mais ou menos como se fizera com os samaritanos, uns 200 anos antes, o partido dos fariseus e zelotes, sentindo-se mais fortes, resolveram partir para a confrontação com o inimigo romano, e declarar a independência da Palestina judaica.
         O resultado dessa guerra, como sabemos, foi catastrófico para os judeus, mas muito benéfico para o critianismo que, solto das amarras do templo, partiu para a conquista do Império Romano e do mundo, obtendo retumbante sucesso onde os judeus historicamente fracassavam, por seu espírito excessivamente nacionalista que dificultava a universalização da sua fé. Massacrados pelos romanos e superados pelos cristãos, a elite judaica fechou-se ainda mais no seu exclusivismo, acirrando os traços nacionais do judaísmo, até como uma forma de sobreviver incólume, embora estagnado, no grande mundo para onde fora disperso. Há notícias de colônias judaicas da Crimeia, na Rússia, à Espanha, no extremo Ocidente de então. A comunidade está dispersa e sem o seu centro, o templo de Jerusalém, é preciso definir com urgência o cânon dos livros sagrados, a única coisa que lhes restara. E tal foi feito sem que saibamos exatamente como, tal o isolamento em que viviam. A isso se somava um ressentimento profundo, que os fez tratar o restante dos homens como “goim” (= povo não judeu), cuja pronúncia lembra o som do grunido de um porco.
         Desde cedo começou a se espalhar, entre os judeus, uma tradição dos primeiros séculos, de que lá por volta do ano 100, um grupo de rabinos, sob a influência do partido dos fariseus – o único que escapou da destruição romana – se reuniu na cidade de Jamnia, atual Yavne, em Israel, e lá decretou o fechamento oficial do cânon hebraico, excluindo os livros e as passagens extras encontradas na versão dos Setenta - essa historia também começou a fazer parte oficialmente das crenças de estudiosos e especialistas bíblicos, em 1871. Hoje em dia, porém, sabe-se que esse concílio não tratou desse assunto, mas apenas da canonicidade de algumas obras como o Cântico dos cânticos, Crônicas e Eclesiastes, levando-nos de volta à estaca zero, quanto ao evento e os atores que determinaram o fechamento do cânon hebraico na sua versão atual, de sorte que alguns autores chegam a afirmar que o principal critério de fechamento do cânon hebraico foi fazer oposição ao cânon aceito pelos cristãos.
         O cânon aceito pelos cristãos, ora na sua totalidade ora na esmagadora maioria, desde os primeiros tempos, foi a versão dos Setenta, e para combatê-la os tratadistas hebreus determinaram ao longo dos anos algumas condições para a aceitação de um livro como sagrado, diferenciando o seu cânon do cânon cristão. Essas condições foram as seguintes:
         a) O livro deveria originalmente ser escrito em hebraico ou aramaico, a língua falada pelo povo.
         b) O livro deveria ter sua canonicidade sancionada pelo uso do povo hebreu no ambiente da Palestina.
         c) O livro deve conter os grandes temas da religião judaica tradicional, na visão dos fariseus, principalmente os que se referem à eleição do povo hebreu e à aliança do Sinai.
         d) O livro deveria ter sido composto antes do tempo do profeta Esdras, mais ou menos 300 a.C., o que levantou grandes debates sobre as canonicidade de alguns livros como Ester, Jonas, Eclesiastes e Daniel, que fazem parte do cânon hebraico, mas foram escritos depois dessa data limite, quando tradicionalmente se dizia haver cessado toda profecia. O prórpio livro de Esdras foi escrito bem depois da existência desse personagem!
         Por conseguinte, os livros que a Igreja hoje chama de “deuterocanônicos” ficavam absolutamente de fora, partindo da suposição, não documentada é verdade, que o povo da Palestina não usava a versão dos Setenta, mas apenas o rabi “herético” e “subversivo” dos cristãos, e a sua “malta” de seguidores. O famoso rabi Akiba ben Iosef, um dos mais importantes personagens da tradição religiosa judaica, morto na guerra de 133-135, chegou a afirmar que quem lesse os deuterocanônicos não teria parte na vida eterna (ver o verbete “Developmente of the Hebrew Bible Canon”, na Wikipedia em inglês). O rigorismo desse critério fica claro quando inclusive partes de livros canônicos, como a conclusão de Mardoqueu em Est 10, o episódio dos jovens na fornalha ardente, a acusação de Suzana e o episódio do dragão, em Daniel, e a Carta de Jeremias, em Baruc, cujos originais foram escritos em grego.
                Outro elemento que igualmente nos mostra o caráter arbitrário e um tanto indefinido dessas decisões, é que o escritor judeu, Flavio Josefo, do século I, ligado à escola dos fariseus, dividia a Bíblia hebraica em 22 livros, juntando vários com um nome só – por exemplo, os doze profetas menores são contados como se fossem um livro apenas – de sorte a que seu número coincidisse com o número das letras do alfabeto hebraico. Outros, mais abertos à influência estrangeira, faziam a divisão do cânon em 24 livros, conforme o número de letras do alfabeto grego. Por aí se vê...
         Porém, apesar dessas restrições tão pesadas, os deuterocanônicos continuaram a ser usados e citados por vários estudiosos judeus até a idade Média, e mesmo sendo lidos em algumas festividaddes, até que esse “hábito” cessou por completo – o leitor que quiser se aprofundar mais nesse assunto, acesse o endereço (www.mercaba.org/FICHAS/Apologetica.org/historia_canon_03.htm).
         Os 24 livros do cânon hoje aceito por judeus, protestantes e ortodoxos russos são: Os Livros da Lei (a Torá), em número de 5; Os Profetas (Nevi’im) dividido em profetas anteriores: Josué, Juízes, Samuel (juntos) e Reis (juntos), e profetas posteriores: Isaías, Jeremias e Ezequiel, além dos doze profetas menores, todos juntos, num total de 8 livros; e os Escritos (Ketuvim) livros de sabedoria, entre os quaias se encontram o livro de Daniel e Crônicas, em número de 11.
         E tudo ficou em paz, até que houve uma grande reviravolta...

Notas
(1) Os livros citados como “canônicos” pelo Primeiro Testamento, mas que se perderam e dos quais não temos outra notícia são:
- Livro de Jasher, ou Livro do Justo, citado em 2 Samuel e em Josué.
- Livro das guerras de Iavé, citado em Números.
- Anais dos reis de Israel e Anais dos reis de Judá, citados em 1 Reis.
- Livro do profeta Semeias e Livro do vidente Ado, citados em 2 Crônicas.
- Estatutos da realeza (escrito por Samuel), citado por 1 Samuel.
- História de Salomão, citado por 1 Reis.
- Anais do rei Davi, citado por 1 Crônicas.
- Profecias de Aias de Silo, citado por 2 Crônicas.
- Atos de Jehu, citado por 2 Crônicas.
- A visão de Isaías, citado por 2 Crônicas
Etc. etc. – se o leitor quiser uma abordagem mais exaustiva sobre o assunto recomendo, com certa cautela, o verbete da Wikipedia em inglês “Non-canonical books referenced in the Bible”.
Algumas pessoas, mais afeitas à curiosidade que o recomendável, suspiram, em alguns sites da internet, o quão bom seria se esses livros fossem encontrados! Francamente, nós, os católicos, que temos a graça de receber a Palavra de Deus encarnada, Jesus Cristo, transmitida sem falhas pela sucessão apostólica, precisamos de alguma coisa a mais?

(2) Os livros deuterocanônicos são: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruc, 1 e 2 Macabeus.

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