Crônicas

domingo, 26 de abril de 2015

REGALISMO

Prof Eduardo Simões

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Um dos atos mais extremados de regalismo: a expulsão e fechamento da ordem dos jesuítas, defensores apaixonados dos direitos papais, por pressão de reis de países católicos, no século XVIII. Na ilustração vemos a expulsão dos jesuítas de seu convento em Valparaíso, no Chile, no ano de 1768.

        Regalismo é um conceito jurídico-político nascido da confrontação entre o Estado Nacional, ao longo de seu processo de formaçã na Europa Ocidental, que começa no fim da Idade Média e vai até o início da Idade Contemporânea, e os Papas, ou o clero católico, a respeito dos limites de soberania de cada um, a saber: dos reis, enquanto representantes da soberania estatal e dos Papas, enquanto representantes da soberania temporal da Igreja.
        De uma maneira geral, no início da Idade Média o clero católico tendeu a se aliar com a nobreza para esvaziar as pretensões de poder e soberania dos reis, o que interessava aos ideais de “Cristandade”, defendido por Roma, onde a autoriadd papal deveria ser incontrastável, apoiada na crença da superioridade do mundo espiritual sobre o material. O soberano oficial, reconhecido pelo Papa, era o Impeador do Sacro Império Romano-Germânico, ao qual os reis deveram se submeter, assim como o imperador deveria se submeter ao Papa, ou agir a este associado, assim como o vassalo ao suserano, etc.
        Era uma cadeia de comando, uma escada de hierarquias, controlada pela Igreja, construída para um mundo que se via provisório, diante a chegada próxima de Jesus Cristo. Mas, com este não chegava, os reis, enquanto lideranças regionais, aproveitaram para ampliar a sua área de influência, sacudindo tanto o jugo do Império como a influência do clero católico, sem romper com a Igreja, é claro. Nessa disputa a questão econômica ganhou forte relevância, ainda mais que o rei construíra uma aliança de interesses com uma classe que entendia muito de economia: a burguesia, onde abundava, nessa época, elementos judaicos, proibidos de possuir terras e exercer profissões liberais.
        Ao longo da Idade Média, e até ao final da Idade Antiga, o clero católico da Europa Ocidental juntara uma quantidade de terras formidável, tornando-se o maior proprietário da Europa, repleto de terras abundantes e férteis, doadas em um momento de profundo agradecimento ou sentimento de culpa, com as quais obtinha rendas enormes, a partir da exploração do trabalho de servos, conforme os costumes da época, e arrendamentos a camponeses livres. A receita retirada dessas terras entrava para o patrimônio da igreja, descapitalizando os reis. Grandes bispados e abadias (sedes de mosteiros) eram como poderosos senhorios feudais, que não raro se uniam aos senhores leigos (os nobres), para por os reis contra a parede, quando seus interesses eram ameaçados.
        À medida que o comércio se expandia, e a organização da sociedade medieval se estabilizava, houve um aumento da população e um crescimento das cidades, transformadas em polos de cultura, graças a redescoberta dos autores greco-romanos pela massa de intelectuais leigos (os monges já os conheciam de leituras nos mosteiros), o contato com a cultura árabe, muito mais evoluída, nas cruzadas, e o surgimento de universidades, onde o resgate das normas do antigo direito romano, principalmente na Itália, causou estragos filosóficos à ordem feudal, quando os juristas dela saídos começaram a enfatizar a superioridade do soberano sobre o Papa e das razões de estado sobre a moral cristã, solapando a moral ligada a valores religiosos, inviabilizando ideologicamente o conceito de cristandade.
          Esses juristas, cooptados pelos monarcas em ascensão, criaram paulatinamente uma justificativa legal, já que a religiosa e espiritual não era possível, muito pelo contrário, para as suas pretensões reais ao patrimônio material da Igreja (terras e rendas), como uma forma de se fortalecer ante o imperador e outros reis ascendentes. Daí adveio longas discussões sobre quais seriam os limites de atuação, dos direitos e até privilégios, dos reis, que foram sempre crescentes, e bem justificados pelos juristas, em detrimento de direitos e privilégios da nobreza e do clero. Esse poder de o rei interferir na esfera eclesiástica, no que diz respeito a economia e administração, foi chamado de “droit de régale” ou “regalia”.
        Alegando esse direito, os reis começaram por se apossar das rendas de toda diocese que estivesse vacante, por causa da morte ou destituição do bispo. A princípio eles se apossavam dessa renda apenas no tempo de espera de um novo bispo, mas em seguida, aproveitando-se do apoio da burguesia e de parte do clero, conseguiram fazer passar leis que determinavam o desvio dessas rendas pelo tempo de um ano, toda vez que uma diocese ficasse vaga, ampliando suas regalias. Daí para a supressão ou tomada pura e simples das terras da Igreja foi um pulo, sempre com muita resistência e desgaste mútuo.
        Em alguns países essa situação foi facilmente resolvida com a Reforma Protestante, que em suas vertentes anglicana e luterana faziam da igreja um apêndice do estado, preservando a fé cristã, tão cara ao povo, facilitando a expoliação patrimonial da Igreja Católica. Nesses países (Inglaterra, Alemanha, Suécia, etc.), por conseguinte, não se pode falar em regalismo, em conflito de jurisdição entre o Estado e a Igreja, e esse fenômeno deve ser considerado apenas no âmbito dos países que continuaram católicos.
Os problemas do regalismo só fizeram se agravar ao longo dos séculos XVIII e XIX, com os soberanos querendo interferir, proibindo ou autorizando, não só na nomeação de bispos com até em questões de doutrina, como, por exemplo, aconteceu na Espanha, onde foi proibida a divulgação da bula papal que explicitava o dogma da Imaculada Conceição e outra que condenava a presença de católicos na maçonaria. Esse foi, seu dúvida, o auge do regalismo, até que no final do século XIX, acreditando que a Igreja Católica estava com os dias contados, a burguesia liberal europeia separou definitivamente a Igreja do Estado, criando ainda uma série perseguições e obstáculos diversos – proibição de ordens monásticas, de usar hábito em público, fechamento de seminários, etc.) – fazendo votos que o seu passamento não demorasse muito, até que o presidente da mais poderosa nação da terra acorreu ao Vaticano, e ao Papa, para pedir ajuda contra o seu pior inimigo, o comunismo soviético, e se tornasse habitual os papas se tornarem as maiores personalidades do mundo.
Muito se tem escrito sobre o regalismo e os males que ele trouxe para a Igreja, não só no que diz respeito à perda patrimonial, que foi imensa, mas também espiritual-psicológica, principalmente numa certa sensação de hostilidade e mágoa com o mundo, uma certa sensação de encurralamento, de que “o mundo está perdido” – era como se os lobos, acreditando que as ovelhas já estava “no papo”, estivessem devorando diretamente aos pastores – muito comum entre os católicos antigos, que provocou um certo distanciamento, e quase indiferença da Igreja institucional em relação aos problemas da modernidade, até que uma catástrofe humana sem precedentes, a Segunda Guerra Mundial, e um Papa no fim da vida, João XXIII, deram forças a que a Igreja sacudisse a poeira e desse a volta por cima.

Eu pessoalmente acho que o regalismo teve um ponto muito positivo que foi livrar a Igreja do peso de cuidar e manter tantas propriedades e tesouros culturais, que de alguma forma a deixavam mais lenta, mais pesada para o cumprimento de sua missão: começar a criação de um reino espiritual, divino, já nesse mundo, que não prescinde ainda, mas que também não pode depender, antes, de bens materiais. Aliviada de tanta carga, a barca de Pedro ganhou mais flutuabilidade, ficou mais leve e ágil, e de repente os Papas gozaram de uma popularidade e de um poder político, como há séculos não se via. Será que já houve igual?

sábado, 25 de abril de 2015

PECADO HISTÓRICO

Prof Eduardo Simões

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Momento em que a senhora 'evangélica' atacava a imagem da igreja. Em total desatino ela gritava: "Reage!", como fez o bispo Von Helder, da Universal, com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, na TV, anos atrás. Quem, entre os católicos, um dia acreditou que isso tivesse vida própria? É por isso que nós as chamamos de "imagens". Esperamos que tais ensinamentos sejam frutos só da ignorância, pois seria muita má fé!

         Sobrecarregada pela doença mental, pela ignorância e por maus conselhos, uma pobre senhora ‘evangélica’, pega uma enxada, e se dirige até a igreja de Nossa Senhora da Piedade, e começa a destruir, sem piedade, a imagem de uma enorme pietá, que há do lado de fora desse templo católico, no centro de Belo Horizonte.
Há menos de um ano, também em Minas Gerais, um rapaz invadiu uma igreja e começou a destruir várias imagens, inclusive uma, a de Nossa Senhora do Patrocínio do Santíssimo Sacramento, tombada pelo patrimônio histórico. Após cometer o crime, o rapaz foi se abrigar em um templo da Igreja Universal. Preso mais tarde, confessou que fazia parte da Força Jovem da Universal. Nos dois casos alegou-se doença mental, o que pode acontecer, mas quando o sintoma de uma doença tão pessoal começa a se generalizar (há notícias de vários outros ataques a igrejas e a centros de umbanda e espíritas, pelo Brasil), começamos a desconfiar do caráter privado desses eventos.
Nos dois casos, o pretexto para o crime foi obedecer às ordens de ‘Deus’, emanadas literalmente da Bíblia, que ordena a destruição de ídolos e qualquer representação de coisas naturais, como está prescrito em Ex 20,4; Dt 5,8; Is 44,9-20, etc. Isso levanta de cara uma questão: por que essa gente, tão zelosa com a Palavra de Deus, não a cumpre de maneira mais completa e honesta, atacando os monumentos públicos, estátuas e imagens muito mais evidentes, que povoam as praças do nosso país? Em São Paulo, por exemplo, eles poderiam fazer uma campanha para explodir o enorme e chamativo monumento às bandeiras, de Vitor Brecheret, além de quadros históricos e estátuas em museus, teatros, etc. O Estado Islâmico pode não estar tão longe.
Essa pobre gente está sendo muito mal orientada, mas o pior é saber que até pouco tempo atrás boa parte dela era católica, e que eu mesmo nasci em um país quase 100% católico. Como é que as coisas chegaram a esse ponto? Ao invés, o de vermos crescer um protestantismo histórico, respeitoso, teologicamente bem embasado e aberto ao diálogo, o que vemos são seitas que, não raro, descambam para um anticatolicismo, como se houvesse uma grande mágoa abafada ou uma profunda ignorância da religião, que durante quase 500 anos reinou absoluta em nosso país, e ajudou-o a construir como que à sua imagem e semelhança? Nós os católicos precisamos meditar muito sobre a nossa participação nisso tudo.
Outro desafio que nos cabe é de questionar se essa violência vai parar nas imagens ou vai avançar até os que as veneram, e que jamais as adoraram. Não seria a primeira vez na história que um grupo fanático, começaria por destruir os símbolos de um grupo social, para depois tentar destruir fisicamente os membros desse grupo. Eles pararão nas imagens ou avançarão ainda na direção de realidades mais elevadas aos católicos, mas por eles desprezadas, como as Sagradas Espécies da Eucaristia?
Por isso, não podemos deixar de defender o estado laico, religiosamente não comprometido, que proteja todas as nossas diversidades e possa, em caso de litigio social, agir como um mediador sóbrio e imparcial. Qualquer tentativa de instrumentalizar o estado a favor de uma religião é um desatino, a não ser que se institua a proibição de mudar de religião, como em alguns países islâmicos. Querer levar para dentro do Parlamento as disputas religiosas, como pregam, inclusive, alguns grupos católicos, é um erro, erro ao qual se filiam várias seitas evangélicas, com um prejuízo tremendo para o cristianismo, e alegria dos ateus e não cristãos, que podem citar o caso de “bispos”, “bispas”, “apóstolos”, envolvidos em rumorosos escândalos financeiros. Os cristãos engajados devem ir para o Parlamento para lutar pelos interesses gerais da sua comunidade, a partir uma ótica republicana e democrática, independente da sua orientação religiosa e a de seus eleitores. Querer se candidatar só para impedir que um determinado feriado religioso seja retirado do calendário não é razoável, não contribuamos para o caos geral.
Não esqueçamos também de denunciar às autoridades constituídas o crime de destruição de patrimônio perpetrado por esses fanáticos, para que eles paguem, na forma da lei, pelos danos físicos causados (Rm 13,1-7; Pd 2,13-17; Tt 3,1). Não se trata de esquecer o mandamento maior do perdão, mas de antes dar uma lição de civilidade e civilização para os demais membros da comunidade. O perdão vem do fato de em hipótese nenhuma revidarmos na mesma moeda. Quem vive ligado ao Antigo Testamento e a Lei do Talião não são os católicos. A nós interessa mais os Evangelhos e o Segundo Testamento.
Tampouco devemos reagir fisicamente ao vermos alguém destruindo imagens na nossa igreja, diante de nós, para evitarmos que nós, ou o agressor, se machuque, aumentando a gravidade do gesto criminoso. Se der para segurar, sem machucar ninguém, certo, mas se o criminoso for jovem e forte, é melhor chamar a polícia, ou quando muito seguir o autor, para ver aonde vai se ocultar, e não se angustiar com a perda da imagem; pelo contrário, a comunidade deve se juntar, se cotizar, e fazer uma maior e mais bonita ainda. Esses fatos são Deus querendo ver até onde vai a nossa independência em relação aos bens financeiros. Os católicos brasileiros precisam contribuir mais com a sua Igreja.
Não devemos, ainda, esquecer que, apesar das profundas e intransponíveis diferenças religiosas que temos com umbandistas e espíritas, devemos nos solidarizar com eles, e com os membros de qualquer outra religião, sempre que estas forem vítimas de alguma violência, venha da parte desses ou de outros, pois a caridade, a esmola da solidariedade, enfraquece o ódio, o fanatismo, e apaga uma multidão de pecados (Eclo 3,30;7,32-36; Tb12,9; 1Pd4,8; Dt 15,7-11) .
E isso é que é ser evangélico!

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Foto de um centro de umbanda depredado por quatro jovens atletas 'evangélicos'. Por pouco não houve agressão aos fieis do centro, alguns idosos, que estavam lá na hora do crime.

domingo, 19 de abril de 2015

A FALTA QUE O LEÃO FAZ - II

Prof Eduardo Simões

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Um símbolo! O resultado da estupidez humana a serviço do monocromatismo sexual. A jovem caçadora americana Kendall Jones,19, posa ao lado do corpo de um raríssimo leão branco, morto por ela, em uma foto postada no seu facebook. Kendall Jones pode ser considerada o mais jovem ser humano a ter morto os cinco grandes (leão, elefante, hipopótamo, rinoceronte e búfalo), com apenas 13 anos! O que é ser homem e ser mulher requer uma discussão muito mais profunda e inteligente, ou menos politicamente correta, do que acontece hoje. Entre os povos germânicos o monocromatismo sexual ocorre por exacerbação do masculino, de onde as mulheres competirem com os homens nas habilidades mais guerreiras e agressivas, enquanto que entre os latinos se dá por exacerbação do feminino, de onde todo o enorme culto ao feminino, que vemos na nossa televisão, por exemplo. Quantas pessoas não votaram pela primeira vez em Dilma Rousseff, sob o pretexto de que as mulheres seriam "mais honestas" que os homens ou que sabiam "administrar melhor"? É isso que estamos vendo?

         No final dos anos 1980, de volta ao Brasil, o ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, desfila pelas praias do Rio de janeiro, trajando uma sunga de crochê, usufruindo de seu novo sucesso editorial: O crepúsculo do macho, onde, de uma forma ainda embrionária, critica concepções da esquerda e da direita tradicionais, e saúda a nova sociedade dominada por elementos femininos, ou por uma “natureza” feminina (1).
         Na década seguinte novas pesquisas vieram acrescentar dados “perturbadores” sobre o comportamento natural de mamíferos na natureza, feitas por cientistas, embasadas em numerosas imagens de fotos e vídeos, mostrando o homossexualismo como um fenômeno comum a todos os grandes mamíferos, na natureza, aparecendo, inclusive na capa de uma conhecida revista, embora bastante sensacionalista, a foto de dois leões machos, aparentemente trocando carícias.
         A televisão não deixou por menos, em um folhetim da Rede Globo (2), o ator Floriano Peixoto, vive o papel de um travesti memorável: Sarita Vitti, uma espécie de super-humano, turbinado por sua dupla natureza, que espanca valentões, tem sempre bons conselhos, bom caráter, corajoso, respeitador, etc., em contraste com os outros personagens masculinos, fracos, imaturos ou mau-caráter. A mensagem é clara: por dispor de duas naturezas, e mais ainda por deixar predominar a natureza feminina,  Sarita é superior aos que só compartilham uma única natureza, feminina ou masculina. O personagem é sábio porque teve a audácia e o “bom senso” de assumir o seu “lado feminino”, em um mundo onde a inveja do pênis foi substituída pela inveja do útero, e a emissora começava a assumir a linha heterofóbica, que a caracteriza.
         Em contraste com esse personagem, e com outros que seguirão nessa linha, nos folhetins dessa emissora, quando aparece um personagem defendendo, na sua totalidade ou em algumas questões, a moral dita tradicional, este, ou esta, é apresentado sempre como um(a) refinado(a) hipócrita, é quase sempre o(a) vilão(ã) principal da história ou está a ele(a) associada(o). E assim, tijolo por tijolo foi sendo desmontado, de dentro para fora, nos lares brasileiros, o monumento ao homem tradicional, protetor e provedor da família, assim como os preceitos morais que, aparentemente lhe davam sustentáculo, e que, com o tempo, haviam se tornado obstáculos às novas estruturas socioeconômicas, e a sua moral mais pragmática e assexuada.
         Criou-se, para justificar tamanha inversão, o mito do homem “sensível”, como se o homem tradicional fosse insensível – não o é, ele apenas controla mais as manifestações de sua sensibilidade, principalmente nas situações difíceis, expondo-se a uma dor maior, ataques cardíacos e derrames, só para não preocupar demasiadamente a esposa e filhos, porque ele é movido acima de tudo por valores morais e sentimento de dever. O prolongamento desse erro tem mostrado que o homem “sensível” está mais preocupado com a sua própria pele, a principal sede de sua sensibilidade, e por ela, ele não hesita em expor a pele de filhos e esposa, pra fugir ou abreviar a sua dor.
         Entretanto, estudos recentes feitos entre populações de leões na África Ocidental vieram abalar os conceitos politicamente corretos, nascidos da nova ordem sexual (3). A dizimação de grandes machos saudáveis, por caçadores, que certamente os preferem a leões muito jovens, velhos ou doentes, está causando uma catástrofe populacional sem precedentes entre os animais dessa espécie. O que acontece é que na ausência de um poderoso macho, leões jovens, e até não muito saudáveis, estão tomando à frente dos bandos, matando os descendentes saudáveis dos antigos chefes, enquanto geram suas proles, menores, prematuras, fracas e doentias, que, por sua vez, têm muito poucas chances de vingar na natureza.
         Por serem inexperientes ou fracos, esses leões facilmente perdem a liderança para outros, tão jovens ou fracos quanto eles, deflagrando nova matança de filhotes, e novas proles, insustentáveis. As leoas, ao invés do que acontece em muito documentário ridículo, inclusive da National Geographic, onde uma leoa organiza, sozinha, um bando vitorioso, https://www.youtube.com/watch?v=4uZ1nTjVmh4, traumatizadas pela perda de tantas ninhadas, abandonam seus recém-nascidos doentes, e até o bando, na esperança de encontrar um macho saudável e experiente, que a ajude a formar um novo bando. Em vão. E assim, só por causa da perda desses machos saudáveis, tão vilipendiados, embora a quantidade de leões caçados não seja fora do comum, inclusive porque esse declínio ocorre mesmo dentro de áreas protegidas, a população de leões da África Ocidental está em risco de extinção imediata.
Qualquer semelhança com a nossa realidade atual, principalmente a dos nossos jovens, será mera coincidência? Digo isso porque, como professor estou cansado de ouvir dizer que o péssimo comportamento dos jovens, que por longo tempo foi associado à inteligência e à contestação da ordem ditatorial machista, como dizia Fernando Gabeira (1), hoje mostra claramente a sua feição ilógica e deletéria. A violência dirigida e regulada, em função dos interesses bem claros do “macho alfa” foi substituída pela violência difusa e inesperada dos leõezinhos imaturos, emocionalmente aleijados pela ausência do modelo, e quiçá da violência lógica dos antigos, a indicar o que deveria ser preservado e o que deveria ser combatido. Hoje, não sabemos o que preservar e o que combater. As leoazinhas também estão confusas e inseguras, pela ausência ou péssimo modelo de pais que ainda estão em casa, engravidam precocemente, logo dos leõezinhos menos capazes, e se tornam mais um problema para a sua família e para a escola.
A família, assim como a sociedade brasileira, está sem rumo. A mulher, sozinha, não pode ser modelo de pai para os filhos e vice-versa, o mais comum, nesses casos é o adulto usar das crianças como muleta afetiva, superprotegendo-os, o que torna a família homoafetiva uma impossibilidade lógica, sociológica, psicológica e natural. Infelizmente, poucos pensam como um prefeito recente de Paris, um homossexual assumido, que se mostrou contrário ao conceito de família homoafetiva, com uma frase que deveria ser lapidada em diamante: “As crianças são mais importantes [e quanto!], que o direito de possuí-las”.
Aos poucos, talvez tarde, foram ficando claras as razões do comportamento “parasitário” dos grandes leões. Descansando, ele poupa as suas forças para os inúmeros confrontos com leões rivais, e até para ajudar decisivamente as fêmeas a derrubar grandes presas, e a enfrentar predadores concorrentes, como os bandos de hienas. Comendo a melhor parte das caças, ele também tem melhor condição de recompor as suas forças, a serem empregadas em novos combates, onde só ele pode atuar com vantagens. Enfim, ao se manter vivo, o leão alfa pode garantir a estabilidade e a boa genética do grupo, indispensáveis não só para o sucesso do bando como de toda a espécie. Essa é a lição que a natureza está nos ensinando: tire o grande leão, substitua-o por qualquer um, e a espécie desaparecerá em dois tempos.
Transferindo os ensinamentos para a nossa espécie diremos que a nossa sociedade carece enorme e urgentemente do resgate do homem de valor, do pai de família, firme, estável, cumprindo o seu papel, senão de mantenedor, nesse ponto a mulher pode perfeitamente participar e em alguns momentos críticos até açambarcá-lo sozinha, afinal a linha de produção moderna já não exige tanta agressividade e força como no passado, mas sem nunca abrir mão do papel de protetor, e de primeira linha de defesa da família, em vista do bem estar dos filhos e da esposa. E mesmo que ele tenha menos força do que ela, continua valendo a máxima antiga que diz que os primeiros a abandonar o navio são as crianças, as mulheres e os idosos, por fim os homens, se der tempo! E porque isso? Porque é da nossa natureza, e isso foi Deus quem nos deu; ninguém, nem nada, nos há de tirá-la!!!.
“E vós, maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la [não deixar que o mal lhe aconteça, ou sobre ela permaneça]... Assim também os maridos devem amar suas mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama sua mulher ama a si mesmo, pois ninguém jamais quis mal a sua carne, antes alimenta-a e dela cuida... Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe e se ligará a sua mulher [o sacrifício é dele], e serão ambos uma só carne... Em resumo, cada um ame a sua mulher com a si mesmo e a mulher respeite o seu marido” (Ef 5,25-33; Bíblia de Jerusalém - recomendo)
        
Notas
(1) “A mentalidade machista que predomina ainda nas sociedades latino-americanas é uma das causas profundas da tolerância do povo aos poderes totalitários. Existe uma cumplicidade inconsciente entre o povo e os ditadores, pois o povo está habituado desde a infância, a se submeter à autoridade do pai... é incontestável que é quebrando o machismo dominante que se pode fazer nascer tipos de comportamento que impedirão a volta desta forma de poder... Há um pequeno ditador que “dorme” nos pais, nos maridos, nos professores, nos funcionários, e são essas “dobradiças” bloqueadas que impedem o funcionamento da democracia” (Cohn-Bendit; 1986; 121-122) Livro de Zaíra Ary Farias, frase de Gabeira num debate entre ele e Daniel Cohn-Bendit, sociólogo e político franco-alemão, em Masculino e feminino no imaginário católico: da Ação Católica à Teologia da Libertação; Annablume; São Paulo; 2000. Parcialmente disponível em google-books.
(2) Explode coração; 1995

(3) Há um artigo completo sobre esse assunto no seguinte endereço: http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0083500        

sábado, 18 de abril de 2015

A FALTA QUE O LEÃO FAZ - I

Prof Eduardo Simões

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http://kids.sandiegozoo.org/animals/mammals/african-lion
        
Dizem que um dos sons mais impressionantes da natureza é o urro contínuo, embora irregular, de um leão adulto, saudável, anunciando a sua presença em um território, em geral emitido ao final da tarde, quando diversos predadores saem para a caçada mais proveitosa da noite. É um som gutural, potente, realizado com a boca semiaberta, como se o animal estivesse limpando a garganta, a anunciar que qualquer aproximação custará caro ao invasor, e que pode chegar até a 8 quilômetros de distância. Esse urro é mencionado num dos conhecidos contos de escritor americano Ernest Hemingway, “A curta de feliz vida de Francis Macomber”, um conto com o sentido tão claro quanto trágico: o homem, assim como o leão, Francis Macomber, não deve sobreviver ao seu apogeu, o que é certo, exceto para o suicida, que foge do seu apogeu.
         Nesses últimos tempos vimos nascer, no Ocidente, uma tendência a revisar os papéis sociais e psicológicos que, tradicionalmente, identificaram a homens e mulheres, para nos adaptar a uma proposta de sociedade mais “democrática”, “inclusiva”, “igualitária”, derivada mais de uma mudança de paradigma que da descoberta de fatos insofismáveis, que justificassem essa mudança. Tudo muito superficial, embora politicamente correto.
         As pessoas começaram a pensar nos papéis sexuais, ou de gênero, de forma diferente, e na raiz dessa mudança estava a idéia gestada tanto pelo behaviorismo burguês-capitalista como pelo socialismo intelectual-marxista, de que não existiria uma “natureza”, uma “essência”, dirigindo os sexos a esses papeis, mas antes eram resultantes de modelos sociais historicamente determinados e aprendidos – nessa linha primaram os marxistas europeus, como a pensadora Simone de Beauvoir, com seu célebre axioma: “ninguém nasce mulher, antes, torna-se mulher”, o que fere frontalmente o axioma bíblico da natureza complementar dos sexos (Gn 2,18), assim como o entendimento de uma tradição várias vezes milenar.
          O feminismo moderno, após superada a questão dos direitos políticos, levantada no início do século XX, avançou no viés da valorização pessoal e definição sócio-psicológica da mulher, certamente necessária na época, embora tenha cometido o equívoco de, ao des-historizar e des-politizar o debate, condenar na sua quase totalidade o padrão de relação homem-mulher das sociedades tradicionais, demonstrando um desconhecimento da história original e um anacronismo, que lhes enfraqueceu a percepção sobre a importância das mudanças introduzidas pela sociedade capitalista-industrial nessa evolução.
         A mulher começa a perder a sua importância social primitiva, a partir do momento em que as suas funções tradicionais como dona-de-casa, a saber, cozinhar, costurar, educar as crianças, etc., passaram a ser realizadas com vantagem pelos novos equipamentos públicos de massas: as fábricas, os grandes magazines, creches e pré-escolas, etc., desvalorizando as “mães-de-família” tradicionais, muito valorizadas no passado, que, em algumas situações limites, principalmente nas famílias mais importantes, chegavam a assumir o papel de matriarca, de fato. A mulher perde a sua relevância social no início do século XX, pelo fato de não poder, ainda, ser tratada como produtora ou consumidora, até que a Primeira Guerra Mundial veio sanar essa lacuna. A mulher, na Europa, vai para as fábricas, suprir a ausência dos homens, transformados em bucha de canhão nos campos de batalha, na defesa de uma concepção antiga de “honra”, usada para mascarar interesses financeiro-coloniais nada honrados, como convém a um gênero que ainda se vê “forte”.
         Nas famílias mais ricas e de “classe média”, a mulher já não é mais encarada como uma companheira útil ao projeto original, tanto de homens como de mulheres,
 de se perpetuar por meio da família, e a mulher se torna cada vez mais um adereço, um bibelô, para enfeitar a mansão, do guerreiro-empresário ou profissional liberal bem sucedido, e por isso mesmo saturado de obrigações sociais, festas e recepções, como o rico gozador de Lucas, e a esposa, ex-mãe-de-família, numa espécie de enfeite da casa e um atestado da capacidade do esposo em realizar grandes “conquistas”, algo inerente a todo bom “negócio”. É o tempo da “dondoca”, da “gata de sofá”, o apogeu das “divas”, em geral grandes atrizes, que se ligam a magnatas ou homens famosos, enquanto dividem sua vida entre as colunas sociais e as paginas policiais.
         Da negação da natureza, porém, partiu-se, em seguida para uma afirmação radical da natureza, embora num sentido oposto ao que antes se fazia; dito de outra maneira: a redescoberta da natureza a serviço da inversão de papéis. A mulher agora é quem detém a força e o homem, quando muito, não passa de um auxiliar menor, como a mulher o era durante a expansão da sociedade industrial, e até em um estorvo. Surge o principio da mulher como “dona de seu corpo”, não só para negá-lo ao seu companheiro como também aos seus próprios filhos; e mais uma vez a proclamação superficial de um princípio humano se choca com ditames bíblicos e a lógica da natureza. Nenhum animal mata propositalmente a sua cria, exceto por questão de sobrevivência.
         O mandato divino é anulado e a família sacrificada no altar do individualismo burguês triunfante. A nova parelha humana, constituída quando muito de homem, mulher e um filho, em um futuro próximo talvez nem isso, mais adaptado ao figurino de uma sociedade de consumo compulsivo, que exige uma mão-de-obra sempre disponível, um problema durante o período gestacional ou a educação de muitos filhos. O binômio produtor-consumidor tende a anular a natureza dual, complementar, da espécie humana, para moldá-la aos critérios do mercado.
         É claro que ninguém em são juízo quer uma guerra, ou a prefere à paz, principalmente por causa dos inúmeros sofrimentos que causam àqueles que lhe sobrevivem. A guerra, definitivamente, começou a ficar fora de moda, justo ela que historicamente sempre esteve associada a um ofício quase exclusivamente masculino, associada a conceitos como honra e proteção à comunidade e à família, agora associada pela burguesia às razões de estado, invariavelmente de ordem econômica – não partiam os voluntários franceses, para defender o seu dístico revolucionário  triplamente burguês, cantando que um “sangue impuro”, os realistas e seus aliados, invadiam “nossos campos”, de onde o país tirava a sua maior renda, para “degolar nossos filhos, nossas companheiras” (a Marselhesa). Os pequenos conflitos castelãos do medievo deram lugar aos colossais banhos de sangue da burguesia, as Guerras Mundiais, confirmando a tese de que o macho da espécie humana é um “caso perdido”.
          É nesse momento que ocorre a destronação do leão, antigo símbolo de nobreza e virilidade, apresentado, a partir de uma visão economicista, capitalista, como um parasita ocioso, glutão e pouco produtivo, uma vez que passa a maior parte do dia deitado, descansando. De vez em quando ele se mete em alguma briga com outros leões, exatamente como fazem os malandros em nossas cidades, enquanto as leoas “suam a camisa”, caçando. E, o que é pior, se uma presa é abatida, quando ele está por perto, o “rei” imediatamente usa de sua força superior para afastar as leoas e se empanturrar da melhor parte: “a parte do leão”, em prejuízo das fêmeas e dos filhotes. Mais parecido impossível. A forma rude e brutal como ele se apropria do bando, expulsando o antigo macho dominante e matando as suas crias, para obrigar as leoas a copularem logo com ele, o tornaram ainda mais odioso, tanto que se o achou digno de ser o símbolo do imposto de renda.

A leoa, por sua vez, tem o seu papel de trabalhadora dedicada e disciplinada, realçado, apresentada em alguns filmes e vídeos documentários como a verdadeira rainha das selvas – ver A rainha leoa, da National Geographic  https://www.youtube.com/watch?v=Cf5sakdeiVg. Algo análogo ao que acontece em nosso mercado de emprego ultimamente, onde as empresas impõem cada vez mais a exclusividade do sexo feminino nas contratações, entre outras justificativas por ser uma profissional mais disciplinada (ou seria mais submissa?), além de outras qualidades inegáveis.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

AINDA SOBRE O CHARLIE HEBDO

Prof Eduardo Simões

http://kdfrases.com/frases-imagens/frase-a-liberdade-de-expressao-nao-e-mais-uma-minucia-politica-mas-uma-pre-condicao-para-a-alvin-toffler-162653.jpg
http://kdfrases.com/frase/162653
Para onde tudo converge

         O Papa foi mal interpretado, e prematuramente atacado, por causa de uma brincadeira dita aos jornalistas, durante um voo, ao dizer que se certo assessor dele ofendesse, em palavras, a sua mãe, a do Papa, seria lógico que esperasse um soco, pela ofensa, como se esse tipo de coisa sequer passasse pela cabeça de quem tem uma biografia como a de Francisco – essa, e outras declarações bombásticas de Francisco, têm dado muito que falar na nossa imprensa, sempre rápida em comentar e lenta em meditar, mas que, em minha opinião, são como que balões de ensaio, que ele lança para saber da disposição dos fieis, em escala mundial, em relação a esses temas, talvez porque as “antenas” do Vaticano tenham perdido um pouco de sua sensibilidade, em virtude da crise herdada dos papas anteriores, da qual, a custo, a Igreja em Roma se liberta.
         A declaração despertou em muitos órgãos de imprensa, e em jornalistas obcecados, como Reinaldo Azevedo, da Veja, uma verdadeira enxurrada de críticas e ofensas, querendo fazer supor que o Santo Pontífice poderia estar justificando a ação sangrenta, impensada, covarde e profundamente burra – tanto é que a tiragem do jornal aumentou enormemente após o atentado – contra jornalistas e funcionários do semanário parisiense Charlie Hebdo, em 7 de janeiro do corrente, ou de alguma forma minimizando a sua gravidade, talvez por não ignorar o caráter ateu e anticlerical da editoria do jornal, e de que Papas e personagens da religião cristã já foram brutal e grosseiramente esculachados na capa desse infame pasquim.
         O Papa, que antes de dizer a brincadeira lembrou a responsabilidade que todos têm perante o próximo sobre aquilo que expressam, estava, sem o saber, chamando a atenção para o texto profético de uma música muito singela, composta na década de 1960, pela irmã Irene Gomes MJC, que diz o seguinte: A palavra não foi feita para dividir ninguém/ A Palavra é a fonte onde o amor vai e vem/ A palavra não foi feita para dominar/ O destino da palavra é dialogar/ O destino da palavra é união...” Palavra, ou qualquer outro recurso à comunicação, como um gesto, um vídeo, uma charge, etc. Enfim, para a responsabilidade social e moral da comunicação.
         Se alguém usa de recursos comunicativos para provocar, melindrar ou encurralar, pode se queixar se a vítima da provocação “partiu para cima”? Nesse caso o ofensor se torna tão responsável, quanto a falta de juízo do ofendido, pela gravidade ou desproporção da resposta deste, por qualquer loucura que ele vier a cometer.
         Quem já viu as charges do Charlie Hebdo percebe que um dos recursos mais usados para detratar os adversários do jornal, é desenhá-los em posturas ou situações nitidamente homossexuais. E daí se pode lançar a questão: usar um termo de gíria ou de reprovação, ainda que numa situação inesperada, que talvez nem se repita, contra homossexuais, é crime, mas usar de situações e sentimentos homossexuais para debochar, semana após semana, de adversários, a quem se quer mostrar desprezo, não é?
         Essa é a lógica da burguesia liberal essa mesma burguesia que no início dos anos 1930 disse pela boca de um político espanhol, Manuel Azaña, quando lhe foram criticar o imobilismo da polícia frente à depredação de igrejas e conventos, por vândalos da esquerda, este afirmou que “as igrejas e conventos da Espanha não valem a vida de um único republicano”.
         Tal preocupação com a vida humana é altamente louvável, nem o Igreja de São Pedro, no Vaticano, em si, numa situação ideal, desprovido de todas as outras variáveis, com todas as obras de arte dentro, vale uma vida humana, mesmo sabendo a quantidade enorme, quase infinita, de pessoas que já mudaram a sua vida por causa do que se abriga e funciona no Vaticano, e que depende, em grande parte, de tudo o que está lá dentro; mas o fato é que a hipocrisia de Azaña omitia o fato de que essa preocupação dizia respeito apenas aos prédios da Igreja Católica, e de nenhuma outra instituição, principalmente os prédios do Estado, em que pese o valor simbólico das igrejas para milhões de espanhóis católicos, sem falar de tesouros históricos, de valor incalculável, patrimônio da nação espanhola, que foram roubados das igrejas.
         O resultado dessa barbárie consentida em nome da vida foi a perda de mais de 600 mil vidas, numa das mais bárbaras guerras civis da história, além de milhões de outros, aleijados, traumatizados, empobrecidos, desenraizados, etc. Poucas vezes o resultado de uma ação foi tão díspar, em relação à sua suposta intenção, quanto essa.
         No início deste século, a burguesia liberal nos manda um recado diametralmente oposto: Sim, vale a pena perder a vida, inclusive por ideais abstratos como a “liberdade de expressão”, afinal não morreram 17 pessoas no atentado, dos quais seis não tinham nada a ver com o jornal, além dos três terroristas? Milhões de pessoas não saíram ás ruas em defesa da liberdade de expressão na França, como a dizer: “Estamos prontos para morrer aos milhões, e a matar outros milhões, pela liberdade de expressão”? A propósito: quantos saíram às ruas, para exigir mais proteção à vida, após o massacre de quatro pessoas, entre elas três crianças, em uma escola judia na mesma França, em 2012? Há algo muito errado nisso tudo!
         Talvez a questão maior tenha sido porque o ataque foi dirigido contra um representante de uma das mais poderosas indústrias do mundo moderno: a imprensa, com seus rios de dinheiros bem tangíveis, condicionados por conceitos intangíveis, como o de “liberdade de expressão”, e aí tudo começa ficar mais claro, inclusive para explicar a ira contra a mensagem papal.
         Há um ditado árabe que diz: “enquanto você não pronunciou a palavra você é o seu dono, mas depois que você a pronunciou ela é que se torna o seu dono”.  No livro do Eclesiastes, na Bíblia Hebraica, diz em 5,1 e 5,5, “que tua boca não se precipite”, “não deixes que tua boca te leve ao pecado”, etc. Em nosso livro sagrado há toda uma série de conceitos salutares, avisos e recomendações, como as que o Papa fez em tom jocoso, lembrando-nos de nossa responsabilidade sobre o próximo, um manancial de sabedoria, da qual, talvez, bastasse uma única gota para evitar todas essa tragédia.
         E qual é o limite cristão para a liberdade de expressão? Com a palavra São Paulo: “Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo é permitido, mas nem tudo edifica. Ninguém procure satisfazer aos seus próprios interesses, mas aos do próximo. Tudo que se vende no mercado, comei-o sem levantar dúvidas por motivo de consciência, pois a terra e tudo o que ela contém pertence ao Senhor. Se algum gentio convidar e aceitares o convite, comei de tudo o que vos for oferecido, sem suscitar questões por motivos de consciência. Mas se alguém vos disser: “Isto foi imolado aos ídolos”, não comais, em atenção a quem vos chamou a atenção e por respeito à consciência... a consciência dele... Se tomo alimento dando graças, por que seria eu censurado por causa de alguma coisa pela qual dou graças?”  (1Cor 10,23-30)  

         “Mas nem todos têm a ciência... Não é um alimento que nos fará comparecer para julgamento diante de Deus. Tomai cuidado, porém, para que essa vossa liberdade não se torne ocasião de queda para os fracos. Se alguém te vê sentado à mesa em templo de ídolo... a consciência dele, que é fraca, não será induzida a comer carnes imoladas aos ídolos [ou seja, acreditando nisso]? E assim, por causa da tua ciência perecerá esse irmão pelo qual Cristo morreu. Pecando assim contra vossos irmãos e ferindo-lhe a consciência, que é fraca, é contra Cristo que pecais. Se um alimento é ocasião de queda para meu irmão, para sempre deixarei de comer carne... (1Cor 8, 7-13)