Crônicas

sexta-feira, 17 de abril de 2015

AINDA SOBRE O CHARLIE HEBDO

Prof Eduardo Simões

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Para onde tudo converge

         O Papa foi mal interpretado, e prematuramente atacado, por causa de uma brincadeira dita aos jornalistas, durante um voo, ao dizer que se certo assessor dele ofendesse, em palavras, a sua mãe, a do Papa, seria lógico que esperasse um soco, pela ofensa, como se esse tipo de coisa sequer passasse pela cabeça de quem tem uma biografia como a de Francisco – essa, e outras declarações bombásticas de Francisco, têm dado muito que falar na nossa imprensa, sempre rápida em comentar e lenta em meditar, mas que, em minha opinião, são como que balões de ensaio, que ele lança para saber da disposição dos fieis, em escala mundial, em relação a esses temas, talvez porque as “antenas” do Vaticano tenham perdido um pouco de sua sensibilidade, em virtude da crise herdada dos papas anteriores, da qual, a custo, a Igreja em Roma se liberta.
         A declaração despertou em muitos órgãos de imprensa, e em jornalistas obcecados, como Reinaldo Azevedo, da Veja, uma verdadeira enxurrada de críticas e ofensas, querendo fazer supor que o Santo Pontífice poderia estar justificando a ação sangrenta, impensada, covarde e profundamente burra – tanto é que a tiragem do jornal aumentou enormemente após o atentado – contra jornalistas e funcionários do semanário parisiense Charlie Hebdo, em 7 de janeiro do corrente, ou de alguma forma minimizando a sua gravidade, talvez por não ignorar o caráter ateu e anticlerical da editoria do jornal, e de que Papas e personagens da religião cristã já foram brutal e grosseiramente esculachados na capa desse infame pasquim.
         O Papa, que antes de dizer a brincadeira lembrou a responsabilidade que todos têm perante o próximo sobre aquilo que expressam, estava, sem o saber, chamando a atenção para o texto profético de uma música muito singela, composta na década de 1960, pela irmã Irene Gomes MJC, que diz o seguinte: A palavra não foi feita para dividir ninguém/ A Palavra é a fonte onde o amor vai e vem/ A palavra não foi feita para dominar/ O destino da palavra é dialogar/ O destino da palavra é união...” Palavra, ou qualquer outro recurso à comunicação, como um gesto, um vídeo, uma charge, etc. Enfim, para a responsabilidade social e moral da comunicação.
         Se alguém usa de recursos comunicativos para provocar, melindrar ou encurralar, pode se queixar se a vítima da provocação “partiu para cima”? Nesse caso o ofensor se torna tão responsável, quanto a falta de juízo do ofendido, pela gravidade ou desproporção da resposta deste, por qualquer loucura que ele vier a cometer.
         Quem já viu as charges do Charlie Hebdo percebe que um dos recursos mais usados para detratar os adversários do jornal, é desenhá-los em posturas ou situações nitidamente homossexuais. E daí se pode lançar a questão: usar um termo de gíria ou de reprovação, ainda que numa situação inesperada, que talvez nem se repita, contra homossexuais, é crime, mas usar de situações e sentimentos homossexuais para debochar, semana após semana, de adversários, a quem se quer mostrar desprezo, não é?
         Essa é a lógica da burguesia liberal essa mesma burguesia que no início dos anos 1930 disse pela boca de um político espanhol, Manuel Azaña, quando lhe foram criticar o imobilismo da polícia frente à depredação de igrejas e conventos, por vândalos da esquerda, este afirmou que “as igrejas e conventos da Espanha não valem a vida de um único republicano”.
         Tal preocupação com a vida humana é altamente louvável, nem o Igreja de São Pedro, no Vaticano, em si, numa situação ideal, desprovido de todas as outras variáveis, com todas as obras de arte dentro, vale uma vida humana, mesmo sabendo a quantidade enorme, quase infinita, de pessoas que já mudaram a sua vida por causa do que se abriga e funciona no Vaticano, e que depende, em grande parte, de tudo o que está lá dentro; mas o fato é que a hipocrisia de Azaña omitia o fato de que essa preocupação dizia respeito apenas aos prédios da Igreja Católica, e de nenhuma outra instituição, principalmente os prédios do Estado, em que pese o valor simbólico das igrejas para milhões de espanhóis católicos, sem falar de tesouros históricos, de valor incalculável, patrimônio da nação espanhola, que foram roubados das igrejas.
         O resultado dessa barbárie consentida em nome da vida foi a perda de mais de 600 mil vidas, numa das mais bárbaras guerras civis da história, além de milhões de outros, aleijados, traumatizados, empobrecidos, desenraizados, etc. Poucas vezes o resultado de uma ação foi tão díspar, em relação à sua suposta intenção, quanto essa.
         No início deste século, a burguesia liberal nos manda um recado diametralmente oposto: Sim, vale a pena perder a vida, inclusive por ideais abstratos como a “liberdade de expressão”, afinal não morreram 17 pessoas no atentado, dos quais seis não tinham nada a ver com o jornal, além dos três terroristas? Milhões de pessoas não saíram ás ruas em defesa da liberdade de expressão na França, como a dizer: “Estamos prontos para morrer aos milhões, e a matar outros milhões, pela liberdade de expressão”? A propósito: quantos saíram às ruas, para exigir mais proteção à vida, após o massacre de quatro pessoas, entre elas três crianças, em uma escola judia na mesma França, em 2012? Há algo muito errado nisso tudo!
         Talvez a questão maior tenha sido porque o ataque foi dirigido contra um representante de uma das mais poderosas indústrias do mundo moderno: a imprensa, com seus rios de dinheiros bem tangíveis, condicionados por conceitos intangíveis, como o de “liberdade de expressão”, e aí tudo começa ficar mais claro, inclusive para explicar a ira contra a mensagem papal.
         Há um ditado árabe que diz: “enquanto você não pronunciou a palavra você é o seu dono, mas depois que você a pronunciou ela é que se torna o seu dono”.  No livro do Eclesiastes, na Bíblia Hebraica, diz em 5,1 e 5,5, “que tua boca não se precipite”, “não deixes que tua boca te leve ao pecado”, etc. Em nosso livro sagrado há toda uma série de conceitos salutares, avisos e recomendações, como as que o Papa fez em tom jocoso, lembrando-nos de nossa responsabilidade sobre o próximo, um manancial de sabedoria, da qual, talvez, bastasse uma única gota para evitar todas essa tragédia.
         E qual é o limite cristão para a liberdade de expressão? Com a palavra São Paulo: “Tudo me é permitido, mas nem tudo convém. Tudo é permitido, mas nem tudo edifica. Ninguém procure satisfazer aos seus próprios interesses, mas aos do próximo. Tudo que se vende no mercado, comei-o sem levantar dúvidas por motivo de consciência, pois a terra e tudo o que ela contém pertence ao Senhor. Se algum gentio convidar e aceitares o convite, comei de tudo o que vos for oferecido, sem suscitar questões por motivos de consciência. Mas se alguém vos disser: “Isto foi imolado aos ídolos”, não comais, em atenção a quem vos chamou a atenção e por respeito à consciência... a consciência dele... Se tomo alimento dando graças, por que seria eu censurado por causa de alguma coisa pela qual dou graças?”  (1Cor 10,23-30)  

         “Mas nem todos têm a ciência... Não é um alimento que nos fará comparecer para julgamento diante de Deus. Tomai cuidado, porém, para que essa vossa liberdade não se torne ocasião de queda para os fracos. Se alguém te vê sentado à mesa em templo de ídolo... a consciência dele, que é fraca, não será induzida a comer carnes imoladas aos ídolos [ou seja, acreditando nisso]? E assim, por causa da tua ciência perecerá esse irmão pelo qual Cristo morreu. Pecando assim contra vossos irmãos e ferindo-lhe a consciência, que é fraca, é contra Cristo que pecais. Se um alimento é ocasião de queda para meu irmão, para sempre deixarei de comer carne... (1Cor 8, 7-13)

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