AINDA
SOBRE O CHARLIE HEBDO
Prof Eduardo Simões
http://kdfrases.com/frases-imagens/frase-a-liberdade-de-expressao-nao-e-mais-uma-minucia-politica-mas-uma-pre-condicao-para-a-alvin-toffler-162653.jpg
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Para onde tudo converge
O Papa foi mal interpretado, e
prematuramente atacado, por causa de uma brincadeira dita aos jornalistas,
durante um voo, ao dizer que se certo assessor dele ofendesse, em palavras, a
sua mãe, a do Papa, seria lógico que esperasse um soco, pela ofensa, como se
esse tipo de coisa sequer passasse pela cabeça de quem tem uma biografia como a
de Francisco – essa, e outras declarações bombásticas de Francisco, têm dado
muito que falar na nossa imprensa, sempre rápida em comentar e lenta em
meditar, mas que, em minha opinião, são como que balões de ensaio, que ele
lança para saber da disposição dos fieis, em escala mundial, em relação a esses
temas, talvez porque as “antenas” do Vaticano tenham perdido um pouco de sua
sensibilidade, em virtude da crise herdada dos papas anteriores, da qual, a
custo, a Igreja em Roma se liberta.
A declaração despertou em muitos órgãos
de imprensa, e em jornalistas obcecados, como Reinaldo Azevedo, da Veja, uma
verdadeira enxurrada de críticas e ofensas, querendo fazer supor que o Santo
Pontífice poderia estar justificando a ação sangrenta, impensada, covarde e
profundamente burra – tanto é que a tiragem do jornal aumentou enormemente após
o atentado – contra jornalistas e funcionários do semanário parisiense Charlie
Hebdo, em 7 de janeiro do corrente, ou de alguma forma minimizando a sua
gravidade, talvez por não ignorar o caráter ateu e anticlerical da editoria do
jornal, e de que Papas e personagens da religião cristã já foram brutal e
grosseiramente esculachados na capa desse infame pasquim.
O Papa, que antes de dizer a
brincadeira lembrou a responsabilidade que todos têm perante o próximo sobre
aquilo que expressam, estava, sem o saber, chamando a atenção para o texto
profético de uma música muito singela, composta na década de 1960, pela irmã
Irene Gomes MJC, que diz o seguinte: A palavra não foi feita para dividir
ninguém/ A Palavra é a fonte onde o amor vai e vem/ A palavra não foi feita
para dominar/ O destino da palavra é dialogar/ O destino da palavra é união...”
Palavra, ou qualquer outro recurso à comunicação, como um gesto, um vídeo, uma
charge, etc. Enfim, para a responsabilidade social e moral da comunicação.
Se alguém usa de recursos comunicativos
para provocar, melindrar ou encurralar, pode se queixar se a vítima da
provocação “partiu para cima”? Nesse caso o ofensor se torna tão responsável,
quanto a falta de juízo do ofendido, pela gravidade ou desproporção da resposta
deste, por qualquer loucura que ele vier a cometer.
Quem já viu as charges do Charlie Hebdo
percebe que um dos recursos mais usados para detratar os adversários do jornal,
é desenhá-los em posturas ou situações nitidamente homossexuais. E daí se pode
lançar a questão: usar um termo de gíria ou de reprovação, ainda que numa
situação inesperada, que talvez nem se repita, contra homossexuais, é crime,
mas usar de situações e sentimentos homossexuais para debochar, semana após
semana, de adversários, a quem se quer mostrar desprezo, não é?
Essa é a lógica da burguesia liberal
essa mesma burguesia que no início dos anos 1930 disse pela boca de um político
espanhol, Manuel Azaña, quando lhe foram criticar o imobilismo da polícia
frente à depredação de igrejas e conventos, por vândalos da esquerda, este
afirmou que “as igrejas e conventos da Espanha não valem a vida de um único
republicano”.
Tal preocupação com a vida humana é altamente
louvável, nem o Igreja de São Pedro, no Vaticano, em si, numa situação ideal,
desprovido de todas as outras variáveis, com todas as obras de arte dentro,
vale uma vida humana, mesmo sabendo a quantidade enorme, quase infinita, de
pessoas que já mudaram a sua vida por causa do que se abriga e funciona no
Vaticano, e que depende, em grande parte, de tudo o que está lá dentro; mas o
fato é que a hipocrisia de Azaña omitia o fato de que essa preocupação dizia
respeito apenas aos prédios da Igreja Católica, e de nenhuma outra instituição,
principalmente os prédios do Estado, em que pese o valor simbólico das igrejas
para milhões de espanhóis católicos, sem falar de tesouros históricos, de valor
incalculável, patrimônio da nação espanhola, que foram roubados das igrejas.
O resultado dessa barbárie consentida
em nome da vida foi a perda de mais de 600 mil vidas, numa das mais bárbaras
guerras civis da história, além de milhões de outros, aleijados, traumatizados,
empobrecidos, desenraizados, etc. Poucas vezes o resultado de uma ação foi tão
díspar, em relação à sua suposta intenção, quanto essa.
No início deste século, a burguesia
liberal nos manda um recado diametralmente oposto: Sim, vale a pena perder a
vida, inclusive por ideais abstratos como a “liberdade de expressão”, afinal
não morreram 17 pessoas no atentado, dos quais seis não tinham nada a ver com o
jornal, além dos três terroristas? Milhões de pessoas não saíram ás ruas em
defesa da liberdade de expressão na França, como a dizer: “Estamos prontos para
morrer aos milhões, e a matar outros milhões, pela liberdade de expressão”? A
propósito: quantos saíram às ruas, para exigir mais proteção à vida, após o
massacre de quatro pessoas, entre elas três crianças, em uma escola judia na
mesma França, em 2012? Há algo muito errado nisso tudo!
Talvez a questão maior tenha sido
porque o ataque foi dirigido contra um representante de uma das mais poderosas
indústrias do mundo moderno: a imprensa, com seus rios de dinheiros bem
tangíveis, condicionados por conceitos intangíveis, como o de “liberdade de
expressão”, e aí tudo começa ficar mais claro, inclusive para explicar a ira
contra a mensagem papal.
Há um ditado árabe que diz: “enquanto
você não pronunciou a palavra você é o seu dono, mas depois que você a
pronunciou ela é que se torna o seu dono”.
No livro do Eclesiastes, na Bíblia Hebraica, diz em 5,1 e 5,5, “que tua
boca não se precipite”, “não deixes que tua boca te leve ao pecado”, etc. Em
nosso livro sagrado há toda uma série de conceitos salutares, avisos e
recomendações, como as que o Papa fez em tom jocoso, lembrando-nos de nossa
responsabilidade sobre o próximo, um manancial de sabedoria, da qual, talvez,
bastasse uma única gota para evitar todas essa tragédia.
E qual é o limite cristão para a
liberdade de expressão? Com a palavra São Paulo: “Tudo me é permitido, mas nem
tudo convém. Tudo é permitido, mas nem tudo edifica. Ninguém procure satisfazer
aos seus próprios interesses, mas aos do próximo. Tudo que se vende no mercado,
comei-o sem levantar dúvidas por motivo de consciência, pois a terra e tudo o
que ela contém pertence ao Senhor. Se algum gentio convidar e aceitares o
convite, comei de tudo o que vos for oferecido, sem suscitar questões por
motivos de consciência. Mas se alguém vos disser: “Isto foi imolado aos ídolos”,
não comais, em atenção a quem vos chamou a atenção e por respeito à
consciência... a consciência dele... Se tomo alimento dando graças, por que
seria eu censurado por causa de alguma coisa pela qual dou graças?” (1Cor 10,23-30)
“Mas nem todos têm a ciência... Não é
um alimento que nos fará comparecer para julgamento diante de Deus. Tomai
cuidado, porém, para que essa vossa liberdade não se torne ocasião de queda
para os fracos. Se alguém te vê sentado à mesa em templo de ídolo... a
consciência dele, que é fraca, não será induzida a comer carnes imoladas aos
ídolos [ou seja, acreditando nisso]? E assim, por causa da tua ciência perecerá
esse irmão pelo qual Cristo morreu. Pecando assim contra vossos irmãos e
ferindo-lhe a consciência, que é fraca, é contra Cristo que pecais. Se um alimento
é ocasião de queda para meu irmão, para sempre deixarei de comer carne... (1Cor
8, 7-13)
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