REGALISMO
Prof
Eduardo Simões
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Um dos atos mais extremados de regalismo: a expulsão e fechamento da ordem dos jesuítas, defensores apaixonados dos direitos papais, por pressão de reis de países católicos, no século XVIII. Na ilustração vemos a expulsão dos jesuítas de seu convento em Valparaíso, no Chile, no ano de 1768.
Regalismo é um conceito
jurídico-político nascido da confrontação entre o Estado Nacional, ao longo de
seu processo de formaçã na Europa Ocidental, que começa no fim da Idade Média e
vai até o início da Idade Contemporânea, e os Papas, ou o clero católico, a
respeito dos limites de soberania de cada um, a saber: dos reis, enquanto
representantes da soberania estatal e dos Papas, enquanto representantes da
soberania temporal da Igreja.
De uma maneira geral, no início da Idade
Média o clero católico tendeu a se aliar com a nobreza para esvaziar as
pretensões de poder e soberania dos reis, o que interessava aos ideais de
“Cristandade”, defendido por Roma, onde a autoriadd papal deveria ser
incontrastável, apoiada na crença da superioridade do mundo espiritual sobre o
material. O soberano oficial, reconhecido pelo Papa, era o Impeador do Sacro
Império Romano-Germânico, ao qual os reis deveram se submeter, assim como o
imperador deveria se submeter ao Papa, ou agir a este associado, assim como o
vassalo ao suserano, etc.
Era uma cadeia de comando, uma escada de
hierarquias, controlada pela Igreja, construída para um mundo que se via
provisório, diante a chegada próxima de Jesus Cristo. Mas, com este não chegava,
os reis, enquanto lideranças regionais, aproveitaram para ampliar a sua área de
influência, sacudindo tanto o jugo do Império como a influência do clero
católico, sem romper com a Igreja, é claro. Nessa disputa a questão econômica
ganhou forte relevância, ainda mais que o rei construíra uma aliança de
interesses com uma classe que entendia muito de economia: a burguesia, onde
abundava, nessa época, elementos judaicos, proibidos de possuir terras e
exercer profissões liberais.
Ao longo da Idade Média, e até ao final
da Idade Antiga, o clero católico da Europa Ocidental juntara uma quantidade de
terras formidável, tornando-se o maior proprietário da Europa, repleto de terras
abundantes e férteis, doadas em um momento de profundo agradecimento ou sentimento
de culpa, com as quais obtinha rendas enormes, a partir da exploração do
trabalho de servos, conforme os costumes da época, e arrendamentos a camponeses
livres. A receita retirada dessas terras entrava para o patrimônio da igreja,
descapitalizando os reis. Grandes bispados e abadias (sedes de mosteiros) eram
como poderosos senhorios feudais, que não raro se uniam aos senhores leigos (os
nobres), para por os reis contra a parede, quando seus interesses eram
ameaçados.
À medida que o comércio se expandia, e a
organização da sociedade medieval se estabilizava, houve um aumento da
população e um crescimento das cidades, transformadas em polos de cultura,
graças a redescoberta dos autores greco-romanos pela massa de intelectuais leigos
(os monges já os conheciam de leituras nos mosteiros), o contato com a cultura
árabe, muito mais evoluída, nas cruzadas, e o surgimento de universidades, onde
o resgate das normas do antigo direito romano, principalmente na Itália, causou
estragos filosóficos à ordem feudal, quando os juristas dela saídos começaram a
enfatizar a superioridade do soberano sobre o Papa e das razões de estado sobre
a moral cristã, solapando a moral ligada a valores religiosos, inviabilizando
ideologicamente o conceito de cristandade.
Esses juristas, cooptados pelos monarcas em
ascensão, criaram paulatinamente uma justificativa legal, já que a religiosa e
espiritual não era possível, muito pelo contrário, para as suas pretensões reais
ao patrimônio material da Igreja (terras e rendas), como uma forma de se
fortalecer ante o imperador e outros reis ascendentes. Daí adveio longas
discussões sobre quais seriam os limites de atuação, dos direitos e até
privilégios, dos reis, que foram sempre crescentes, e bem justificados pelos
juristas, em detrimento de direitos e privilégios da nobreza e do clero. Esse
poder de o rei interferir na esfera eclesiástica, no que diz respeito a
economia e administração, foi chamado de “droit de régale” ou “regalia”.
Alegando esse direito, os reis começaram
por se apossar das rendas de toda diocese que estivesse vacante, por causa da
morte ou destituição do bispo. A princípio eles se apossavam dessa renda apenas
no tempo de espera de um novo bispo, mas em seguida, aproveitando-se do apoio
da burguesia e de parte do clero, conseguiram fazer passar leis que
determinavam o desvio dessas rendas pelo tempo de um ano, toda vez que uma
diocese ficasse vaga, ampliando suas regalias. Daí para a supressão ou tomada
pura e simples das terras da Igreja foi um pulo, sempre com muita resistência e
desgaste mútuo.
Em alguns países essa situação foi
facilmente resolvida com a Reforma Protestante, que em suas vertentes anglicana
e luterana faziam da igreja um apêndice do estado, preservando a fé cristã, tão
cara ao povo, facilitando a expoliação patrimonial da Igreja Católica. Nesses
países (Inglaterra, Alemanha, Suécia, etc.), por conseguinte, não se pode falar
em regalismo, em conflito de jurisdição entre o Estado e a Igreja, e esse
fenômeno deve ser considerado apenas no âmbito dos países que continuaram
católicos.
Os problemas do regalismo só fizeram se agravar ao longo dos séculos
XVIII e XIX, com os soberanos querendo interferir, proibindo ou autorizando,
não só na nomeação de bispos com até em questões de doutrina, como, por
exemplo, aconteceu na Espanha, onde foi proibida a divulgação da bula papal que
explicitava o dogma da Imaculada Conceição e outra que condenava a presença de
católicos na maçonaria. Esse foi, seu dúvida, o auge do regalismo, até que no
final do século XIX, acreditando que a Igreja Católica estava com os dias
contados, a burguesia liberal europeia separou definitivamente a Igreja do
Estado, criando ainda uma série perseguições e obstáculos diversos – proibição
de ordens monásticas, de usar hábito em público, fechamento de seminários,
etc.) – fazendo votos que o seu passamento não demorasse muito, até que o
presidente da mais poderosa nação da terra acorreu ao Vaticano, e ao Papa, para
pedir ajuda contra o seu pior inimigo, o comunismo soviético, e se tornasse
habitual os papas se tornarem as maiores personalidades do mundo.
Muito se tem escrito sobre o regalismo e os males que ele trouxe para a
Igreja, não só no que diz respeito à perda patrimonial, que foi imensa, mas
também espiritual-psicológica, principalmente numa certa sensação de
hostilidade e mágoa com o mundo, uma certa sensação de encurralamento, de que
“o mundo está perdido” – era como se os lobos, acreditando que as ovelhas já
estava “no papo”, estivessem devorando diretamente aos pastores – muito comum
entre os católicos antigos, que provocou um certo distanciamento, e quase
indiferença da Igreja institucional em relação aos problemas da modernidade,
até que uma catástrofe humana sem precedentes, a Segunda Guerra Mundial, e um
Papa no fim da vida, João XXIII, deram forças a que a Igreja sacudisse a poeira
e desse a volta por cima.
Eu pessoalmente acho que o regalismo teve um ponto muito positivo que foi
livrar a Igreja do peso de cuidar e manter tantas propriedades e tesouros
culturais, que de alguma forma a deixavam mais lenta, mais pesada para o
cumprimento de sua missão: começar a criação de um reino espiritual, divino, já
nesse mundo, que não prescinde ainda, mas que também não pode depender, antes,
de bens materiais. Aliviada de tanta carga, a barca de Pedro ganhou mais
flutuabilidade, ficou mais leve e ágil, e de repente os Papas gozaram de uma
popularidade e de um poder político, como há séculos não se via. Será que já
houve igual?
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