Crônicas

domingo, 26 de abril de 2015

REGALISMO

Prof Eduardo Simões

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Um dos atos mais extremados de regalismo: a expulsão e fechamento da ordem dos jesuítas, defensores apaixonados dos direitos papais, por pressão de reis de países católicos, no século XVIII. Na ilustração vemos a expulsão dos jesuítas de seu convento em Valparaíso, no Chile, no ano de 1768.

        Regalismo é um conceito jurídico-político nascido da confrontação entre o Estado Nacional, ao longo de seu processo de formaçã na Europa Ocidental, que começa no fim da Idade Média e vai até o início da Idade Contemporânea, e os Papas, ou o clero católico, a respeito dos limites de soberania de cada um, a saber: dos reis, enquanto representantes da soberania estatal e dos Papas, enquanto representantes da soberania temporal da Igreja.
        De uma maneira geral, no início da Idade Média o clero católico tendeu a se aliar com a nobreza para esvaziar as pretensões de poder e soberania dos reis, o que interessava aos ideais de “Cristandade”, defendido por Roma, onde a autoriadd papal deveria ser incontrastável, apoiada na crença da superioridade do mundo espiritual sobre o material. O soberano oficial, reconhecido pelo Papa, era o Impeador do Sacro Império Romano-Germânico, ao qual os reis deveram se submeter, assim como o imperador deveria se submeter ao Papa, ou agir a este associado, assim como o vassalo ao suserano, etc.
        Era uma cadeia de comando, uma escada de hierarquias, controlada pela Igreja, construída para um mundo que se via provisório, diante a chegada próxima de Jesus Cristo. Mas, com este não chegava, os reis, enquanto lideranças regionais, aproveitaram para ampliar a sua área de influência, sacudindo tanto o jugo do Império como a influência do clero católico, sem romper com a Igreja, é claro. Nessa disputa a questão econômica ganhou forte relevância, ainda mais que o rei construíra uma aliança de interesses com uma classe que entendia muito de economia: a burguesia, onde abundava, nessa época, elementos judaicos, proibidos de possuir terras e exercer profissões liberais.
        Ao longo da Idade Média, e até ao final da Idade Antiga, o clero católico da Europa Ocidental juntara uma quantidade de terras formidável, tornando-se o maior proprietário da Europa, repleto de terras abundantes e férteis, doadas em um momento de profundo agradecimento ou sentimento de culpa, com as quais obtinha rendas enormes, a partir da exploração do trabalho de servos, conforme os costumes da época, e arrendamentos a camponeses livres. A receita retirada dessas terras entrava para o patrimônio da igreja, descapitalizando os reis. Grandes bispados e abadias (sedes de mosteiros) eram como poderosos senhorios feudais, que não raro se uniam aos senhores leigos (os nobres), para por os reis contra a parede, quando seus interesses eram ameaçados.
        À medida que o comércio se expandia, e a organização da sociedade medieval se estabilizava, houve um aumento da população e um crescimento das cidades, transformadas em polos de cultura, graças a redescoberta dos autores greco-romanos pela massa de intelectuais leigos (os monges já os conheciam de leituras nos mosteiros), o contato com a cultura árabe, muito mais evoluída, nas cruzadas, e o surgimento de universidades, onde o resgate das normas do antigo direito romano, principalmente na Itália, causou estragos filosóficos à ordem feudal, quando os juristas dela saídos começaram a enfatizar a superioridade do soberano sobre o Papa e das razões de estado sobre a moral cristã, solapando a moral ligada a valores religiosos, inviabilizando ideologicamente o conceito de cristandade.
          Esses juristas, cooptados pelos monarcas em ascensão, criaram paulatinamente uma justificativa legal, já que a religiosa e espiritual não era possível, muito pelo contrário, para as suas pretensões reais ao patrimônio material da Igreja (terras e rendas), como uma forma de se fortalecer ante o imperador e outros reis ascendentes. Daí adveio longas discussões sobre quais seriam os limites de atuação, dos direitos e até privilégios, dos reis, que foram sempre crescentes, e bem justificados pelos juristas, em detrimento de direitos e privilégios da nobreza e do clero. Esse poder de o rei interferir na esfera eclesiástica, no que diz respeito a economia e administração, foi chamado de “droit de régale” ou “regalia”.
        Alegando esse direito, os reis começaram por se apossar das rendas de toda diocese que estivesse vacante, por causa da morte ou destituição do bispo. A princípio eles se apossavam dessa renda apenas no tempo de espera de um novo bispo, mas em seguida, aproveitando-se do apoio da burguesia e de parte do clero, conseguiram fazer passar leis que determinavam o desvio dessas rendas pelo tempo de um ano, toda vez que uma diocese ficasse vaga, ampliando suas regalias. Daí para a supressão ou tomada pura e simples das terras da Igreja foi um pulo, sempre com muita resistência e desgaste mútuo.
        Em alguns países essa situação foi facilmente resolvida com a Reforma Protestante, que em suas vertentes anglicana e luterana faziam da igreja um apêndice do estado, preservando a fé cristã, tão cara ao povo, facilitando a expoliação patrimonial da Igreja Católica. Nesses países (Inglaterra, Alemanha, Suécia, etc.), por conseguinte, não se pode falar em regalismo, em conflito de jurisdição entre o Estado e a Igreja, e esse fenômeno deve ser considerado apenas no âmbito dos países que continuaram católicos.
Os problemas do regalismo só fizeram se agravar ao longo dos séculos XVIII e XIX, com os soberanos querendo interferir, proibindo ou autorizando, não só na nomeação de bispos com até em questões de doutrina, como, por exemplo, aconteceu na Espanha, onde foi proibida a divulgação da bula papal que explicitava o dogma da Imaculada Conceição e outra que condenava a presença de católicos na maçonaria. Esse foi, seu dúvida, o auge do regalismo, até que no final do século XIX, acreditando que a Igreja Católica estava com os dias contados, a burguesia liberal europeia separou definitivamente a Igreja do Estado, criando ainda uma série perseguições e obstáculos diversos – proibição de ordens monásticas, de usar hábito em público, fechamento de seminários, etc.) – fazendo votos que o seu passamento não demorasse muito, até que o presidente da mais poderosa nação da terra acorreu ao Vaticano, e ao Papa, para pedir ajuda contra o seu pior inimigo, o comunismo soviético, e se tornasse habitual os papas se tornarem as maiores personalidades do mundo.
Muito se tem escrito sobre o regalismo e os males que ele trouxe para a Igreja, não só no que diz respeito à perda patrimonial, que foi imensa, mas também espiritual-psicológica, principalmente numa certa sensação de hostilidade e mágoa com o mundo, uma certa sensação de encurralamento, de que “o mundo está perdido” – era como se os lobos, acreditando que as ovelhas já estava “no papo”, estivessem devorando diretamente aos pastores – muito comum entre os católicos antigos, que provocou um certo distanciamento, e quase indiferença da Igreja institucional em relação aos problemas da modernidade, até que uma catástrofe humana sem precedentes, a Segunda Guerra Mundial, e um Papa no fim da vida, João XXIII, deram forças a que a Igreja sacudisse a poeira e desse a volta por cima.

Eu pessoalmente acho que o regalismo teve um ponto muito positivo que foi livrar a Igreja do peso de cuidar e manter tantas propriedades e tesouros culturais, que de alguma forma a deixavam mais lenta, mais pesada para o cumprimento de sua missão: começar a criação de um reino espiritual, divino, já nesse mundo, que não prescinde ainda, mas que também não pode depender, antes, de bens materiais. Aliviada de tanta carga, a barca de Pedro ganhou mais flutuabilidade, ficou mais leve e ágil, e de repente os Papas gozaram de uma popularidade e de um poder político, como há séculos não se via. Será que já houve igual?

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